A chegada na Ucrânia e os primeiros dias em Donetsk

“As histórias das pessoas são muito difíceis mesmo. Muitas choram, contam do medo que sentiram e, com o conflito longe do fim, ainda sentem as bombas, as incertezas quanto ao futuro, o desejo de que a paz chegue logo”

30/01/2015

Recebi hoje uma ligação do escritório de Médicos Sem Fronteiras Brasil: o pessoal havia encontrado um projeto para mim! Incrível – por mais paradoxal que seja dizer isso, porque é sinal de que uma crise em algum lugar precisa da ajuda de uma profissional como eu. Mas a verdade é que eu estava já há algum tempo querendo voltar a trabalhar em campo, e não estava muito fácil encontrar uma forma de fazê-lo com o pouco tempo disponível que eu tinha. Mas, desta vez, deu certo!

O projeto é na Ucrânia, com o objetivo inicial de fazer uma avaliação das necessidades de saúde mental e, de acordo com os resultados, propor uma estratégia de trabalho. Ficarei por um mês. Como sempre, nos projetos de urgência, não há ainda muita informação sobre o contexto, o local onde vou estar, as condições, etc. Apenas sei que vou fazer parte de uma das equipes que vai chegar ao país para avaliar a situação por conta da escalada dos conflitos. Eu já sabia que MSF trabalhava no país há alguns anos, atendendo pacientes vítimas de tuberculose em algumas das penitenciárias da região de Donetsk, no lado leste da Ucrânia. Estar de volta a um projeto de MSF é algo muito importante para mim, porque eu gosto muito desse trabalho, que, em geral, é muito desafiador, mas também tem muitas recompensas. Além disso, desde meados de 2014, faço parte do Conselho Administrativo de MSF no Brasil, um trabalho voluntário, mas cheio de responsabilidades. É importante que eu possa de vez em quando participar de algum projeto da organização.

É isso! Meu tempo na Ucrânia será curto, mas espero poder contribuir um pouco!

06/02/2015

Antes de partir para a Ucrânia, vou ao escritório de MSF em Genebra. Como esse é um projeto de urgência, preciso passar lá para conhecer a equipe de coordenação e entender um pouco melhor os objetivos do meu trabalho. Converso com o coordenador das equipes de emergência, que me mostra no mapa os locais que visitaremos, aprendo um pouco sobre a equipe que já está no país e converso com a coordenadora de saúde mental do escritório, que vai apoiar meu trabalho à distância. Para fins epidemiológicos e operacionais, precisaremos prestar bastante atenção à coleta de dados e aos relatórios de trabalho, para que qualquer estratégia que surja dali tenha coerência e possa ser avaliada. Assim, ela me explicou sobre o banco de dados usado pela equipe de saúde mental e também sobre os formulários que precisarei preencher. Recebi também alguns manuais internos e documentos externos sobre atenção à saúde mental para populações que estão vivendo situações de conflito.

Como este não é meu primeiro projeto, eu encontrei no escritório alguns ‘velhos’ colegas, o que foi muito bom! Isso é uma das coisas divertidas desse trabalho:  nós acabamos por conhecer pessoas de diversas partes do mundo e, às vezes, por sorte, conseguimos reencontrá-los nos momentos mais inesperados!

7/02/2015

Finalmente, chega o dia de ir para Kiev, capital da Ucrânia. Leio que faz entre -2 e -8 graus. Ainda bem que consegui, ainda no Brasil, algumas roupas de neve emprestadas da minha mãe, minha cunhada e minha sogra! A neve e o frio quase me assustam mais do que o conflito… Como brasileira, não estou acostumada com um inverno assim mas, confesso, acho lindo! Só que sei que o frio pode ser extremamente rigoroso nessa parte do mundo e estou um pouco preocupada.

O avião decola. Três horas de viagem. Durante todo o caminho vejo neve, neve e mais neve! Ao chegar ao aeroporto de Kiev (muito bem organizado e bonito), um motorista da MSF vem me receber e me levar para o hotel no centro da cidade que está nos servindo de base. Encontro Delphine, minha colega francesa que tem a função de administradora e financeira no projeto. Ela é quem me mostra meu quarto e, assim que deixo minhas malas, descemos para jantar em um restaurante ao lado. Encontramos também – sem querer – dois colegas franceses que também estão chegando ao país para continuar a avaliação das necessidades no lado noroeste, perto da fronteira com a Rússia, e jantamos todos juntos. Por coincidência, um desses franceses, que é médico, conhecia também um outro médico brasileiro – eles já haviam estado na Ucrânia juntos há algumas semanas – e ele me conta sobre uma visita que fizeram a dois hospitais psiquiátricos na região de Luhansk. O mundo é mesmo pequeno.

8/02/2015

Domingo em Kiev. Acordo cedo para tomar café com minha colega Delphine e depois ler um pouco do material que recebi do escritório de MSF e mais alguns documentos que ela me deu. Consigo passear pela cidade e, entre outras coisas, visito a famosa praça Maidan, no centro da capital, local que, em fevereiro de 2014, viu nascer as manifestações que foram tomadas como o início dos conflitos que continuam acontecendo no leste da Ucrânia. A praça é ampla, bonita, e estava cheia de velas e homenagens, ao que me pareceu, às pessoas que morreram durante os confrontos de fevereiro passado. O frio é tremendo e meu passeio acabou sendo curto, porém muito interessante.

9/02/2015

No meu primeiro dia de trabalho, já preciso arrumar minhas coisas, pois no fim do dia vou para o leste do país, me aproximando do local onde vou ficar mais tempo.

No escritório de MSF em Kiev, eu e meus colegas franceses somos recebidos pelo coordenador-geral do projeto e passamos algumas horas em reunião para saber mais detalhes do país, do contexto político-social atual e dos projetos que MSF desenvolve na região. Nesse meio tempo, a equipe de administração preparou a tradução do meu passaporte para a língua ucraniana e também para o russo, de modo que quando chegar no leste possa conseguir rapidamente o “visto” que todos os que querem atravessar para o outro lado da frente de batalha precisam ter.

No fim do dia, quase às 18 horas, tomei o trem na estação central de Kiev em direção a Krasnoarminsk, pequena cidade mais próxima de Kurakhove, onde fica uma das bases de nossos projetos do lado ucraniano. Como vocês sabem, MSF é uma organização neutra, imparcial e independente e, num local em conflito como esse, é fundamental – além de obviamente necessário, sob o ponto de vista humanitário – trabalhar nos dois lados do conflito e, desde o início, temos conseguido fazê-lo. Compro algumas coisinhas para comer e embarco em direção ao leste. Cerca de oito horas de viagem. Sorte que o trem é bem confortável e não estava cheio!

Chego de madrugada em Krasnoarminsk e um motorista me espera na estação de trem (ufa!). Vou direto dormir um pouco para então, às 9 horas, entrar no carro de novo e pegar mais cerca de uma hora de estrada para chegar em Kurakhove. Nessa cidade, nossa base é um pequeno hotel. Lá, encontro com Petr, logístico nascido na República Tcheca – e que, como parte dos habitantes da ex-URSS, fala um pouco de russo, o que é extremamente útil por aqui – e começamos a organizar minha ida para o posto de polícia em outra cidade para fazer a travessia que, como contei, é necessário para todos, estrangeiros e ucranianos, que desejam passar para o outro lado. A frente de batalha estava bem perto de nós e vimos muitos militares nas ruas – coisa com a qual me acostumei antes mesmo do que eu imaginava.

10/02/2015

Então, eu, o motorista, o tradutor e mais dois colegas estrangeiros – uma médica nascida no Cazaquistão e um enfermeiro paquistanês – arrumamos tudo para irmos rumo a Donetsk, local onde eu ficarei a maior parte do tempo. Como também vamos acompanhar dois caminhões de suprimentos que MSF está levando para a região (os famosos “kits”, que são, na prática, conjuntos de medicamentos e insumos médicos previamente preparados para diferentes condições, como por exemplo, feridos de guerra, doenças crônicas e atenção primária), nosso caminho pelos seis pontos de controle é um tanto mais complicado: os militares dos dois lados quiseram verificar os (vários) documentos que explicavam o conteúdo da carga de nossos caminhões, bem como nossos passaportes e passes que nos permitiam atravessar a frente de batalha. Depois de muitas horas, finalmente chegamos a Donetsk ao anoitecer e logo notamos que os sons que ouvimos ao fundo não são trovões ou algo do tipo, mas sim, bombas. Não consigo vê-las, mas o barulho é muito assustador para mim e esse mal-estar me acompanha o tempo todo na cidade. Logo que chego ao escritório de MSF, encontro minha equipe e vamos para o hotel onde estamos provisoriamente hospedados. O barulho das bombas é muito assustador e a noite promete ser longa.

11/02/2015

Primeiro dia no escritório de Donetsk. Vou me familiarizando com as pessoas e com o trabalho, e, nesse momento, passando o dia todo lendo documentos sobre a região e entendendo um pouco melhor do projeto. Como tínhamos outras equipes de MSF trabalhando por lá, minha parte foi acompanhar a equipe que iria se concentrar nos municípios no sul da cidade, em direção ao sul, ao mar de Azov. A equipe que já estava lá visitou vários centros de saúde, hospitais e prefeituras da região, e encontrou alguns locais, onde já haviam entregado “kits” médicos, que visitei para avaliar as necessidades de saúde mental. Faço meu plano para a semana e logo o dia termina.

12/02/2015

Como uma das equipes de MSF que já estava em Donetsk trabalhava com saúde mental há alguns meses, me junto a eles para conhecer um pouco mais do que fazem. A equipe é composta por cinco psicólogas ucranianas, um tradutor e uma psicóloga internacional (indiana). Visitei com eles a cidade de Amrosivka, quase na fronteira com a Rússia, a leste de Donetsk: lá, visitamos o hospital – que naquele dia não tinha nenhum paciente aguardando consultas de saúde mental –, e depois fomos para um dos abrigos que foram criados na região para pessoas que fogem das cidades mais próximas da linha de frente. As histórias das pessoas são muito difíceis mesmo. Muitas choram, contam do medo que sentiram e, com o conflito longe do fim, ainda sentem as bombas, as incertezas quanto ao futuro, o desejo de que a paz chegue logo. Meu trabalho começa! Nos próximos dias, vou visitar outros locais onde devo avaliar e propor uma estratégia para a saúde mental. Vamos ver o que vai ser possível fazer, as necessidades são muitas. Porém, o país tem recursos, apesar das dificuldades, e as pessoas fazem o possível para seguir em frente, apesar de todos os medos.

Antes de terminar de contar sobre o dia de hoje, acho que não mencionei antes: Donetsk é uma cidade de cerca de 1,5 milhão de habitantes (embora não se saiba ao certo quantos ainda seguem vivendo aqui), muito bonita, limpa e organizada. “Donetsk” é o nome da cidade, mas também do “oblast”, ou seja, do estado. Há ônibus nas ruas, pessoas caminhando, e soubemos que as escolas vão reabrir. Por mais que o som das bombas esteja presente praticamente todos os dias – e seja possível ver os estragos materiais que elas causaram em vários prédios da cidade e da região –, há vida por aqui, o que, com certeza, é um grande alivio e, de certa forma, um enigma para mim: de onde tiram tanta força?
 

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