Delicadezas afegãs

Ginecologista de MSF fala sobre experiência trabalhando em maternidade de Khost, onde a solidariedade e o senso de comunidade marcam forte presença

Nada me prepararia para trabalhar no Afeganistão. Nenhum treinamento, filme ou livro chega perto do que estou vendo aqui.

Estou trabalhando em Khost, uma cidade afegã que fica na divisa com o Paquistão, fazendo parte do “cinturão Pashtun”. Os pashtuns são um povo que vive no leste e sul do Afeganistão. Eles têm uma língua própria e um código de conduta que é ainda mais antigo que o islamismo. Dentre outras coisas, esse código orienta a importância da hospitalidade e a força da comunidade.

O sentido de comunidade é algo profundo aqui: você não é apenas você, você se estende: é filho dos seus pais, irmão dos seus irmãos, marido da sua esposa, empregado do seu chefe, vizinho dos seus vizinhos. Aqui, o limite que determina onde uma pessoa acaba e a outra começa é borrado, já que a dor do seu próximo também é sua, a necessidade do seu próximo também é sua, de uma forma muito bonita.

Nossa maternidade, projetada cinco anos atrás para fazer mil partos por mês, fez mais de 2.200 em março deste ano. Tenho certeza de que isso só é possível por conta da naturalidade com que os pashtun calçam os calos alheios. Nos dias de maior lotação, não é raro ver as pacientes em trabalho de parto dividindo cama. Cada paciente tem direito a uma acompanhante, e as acompanhantes não hesitam em ajudar de todas as formas, confortando as outras pacientes e mesmo limpando os outros bebês.

 

A equipe do hospital se comporta da mesma forma: temos uma obstetriz coordenadora para cada setor, e dentro de cada setor, por vezes não sei quem está responsável por cada tarefa – elas estão sempre se observando, com os olhos afegãos enormes e expressivos, e se ajudando. Talvez tenha demorado dois minutos para elas me incluírem. Cada nova mulher que conheço aqui é assim: ela percebe que sou nova, vem sorrindo, se apresenta, me abraça de forma deliciosamente acolhedora, elogia algo em mim, porque elas se elogiam sempre, e me dá as boas-vindas. Bem-vinda a nossa colmeia.Minha última noite de plantão foi complicada. Estávamos eu e a ginecologista local e tivemos um caso muito difícil, um bebê enorme que havia morrido dentro do útero. Pedimos ajuda ao restante da equipe e, de repente, estávamos todas na sala de parto: três ginecologistas de Médicos Sem Fronteiras (MSF), a ginecologista local, a anestesista de MSF, a anestesista local e duas obstetrizes. Caso muito triste, que só conseguimos resolver devido ao trabalho em equipe.

 

 

Equipe. Todos os colegas de outros setores vieram nos oferecer algum amparo depois desse caso difícil. Foram sorrisos, abraços, conversas, tanto aconchego… é bom estar aqui.

Cada um conforta à sua maneira: as pediatras me convidaram para conhecer a unidade neonatal e ver a evolução dos meus bebês dos últimos dias. Quando estávamos indo para lá, elas receberam uma ligação da sala de parto. Um bebê havia nascido em más condições. Acompanhei-as e, infelizmente, esse bebê também não sobreviveu. Outro bebê nasceu saudável na mesa de parto ao lado minutos depois. A obstetriz que estava acompanhando esse segundo parto foi tentar confortar a mãe do bebê morto e as pediatras foram dar a má notícia. A obstetriz, então, saiu de perto e foi fazer o registro do bebê saudável. Levantou seus olhos imensos e expressivos para mim. Eu: “Sangaê? ” (algo como “tudo bem?”), ao que ela responde “That baby, dead”, com os olhos cheios de água. Abracei-a e disse: ”Vá beber uma água, eu termino aqui para você”. Os olhos rasos d’água derramaram, ela ajeitou o véu e saiu apressada da sala de parto.

E, aos poucos, vou entendendo melhor o que significa estar aqui, o que significa fazer parte dessa comunidade.
 

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