Nascer e (sobre)viver em Gambela

A enfermeira Sofia Miroto Simões, que teve a seu cargo a gestão das atividades de enfermagem de bloco operatório, faz uma reflexão sobre nascer e viver em Gambela, na Etiópia.

Gambela, Etiópia

Para a minha primeira missão com a Médicos Sem Fronteiras (MSF), parti com a coragem e convicção próprias de quem cumpre um sonho, há tanto desejado. Ali, em Gambela, na Etiópia, junto à fronteira com o Sudão do Sul, tudo fazia sentido para mim e tudo me fazia acreditar que as vivências dos primeiros dias – que foram murros bem fortes no estômago – teriam um propósito.

Vieram a incerteza acerca desse propósito e a dificuldade em aceitar.

A pobreza extrema é diferente do sofrimento. Vi de perto os dois. A conviverem descaradamente à minha frente, sem pouparem ninguém, independentemente da idade, género, cor ou religião. Não há o romantismo das pessoas felizes com pouco. Há a realidade dura diária de quem não sabe como alimentar os seus, como se salvaguardar de mais um conflito, como continuar a sobreviver no que outros chamam de vida.

Perdi a conta ao número de bebés que vi nascer. As cesarianas eram uma das emergências mais comuns e vi mães a sê-lo pela primeira vez, ou pela quarta ou quinta vez, com a mesma ausência de emoção, o que me emocionava a mim: falha minha que não entendia o porquê daquele vazio emocional. Os bebés nasciam sem nome, primeiro porque não existia ecografia 3D nem morfológica para determinar o género ou qualquer outra característica e, consequentemente, o destino daquele bebé. Assim, nasciam sem nome, e alguns deles, só quando sobrevivem ao primeiro mês de vida, teriam então um nome. Até lá a sobrevivência é incerta, o registo de um nome custa dinheiro e o possível desapego custa dor.

Não vi mães chorarem de alegria quando o bebé se apresentava ao mundo e chorava, no que seria o primeiro grito de muitos para sobreviver.

Mas, num dos dias, uma mãe chorou, com lágrimas silenciosas a cobrirem-lhe o rosto, e eu, munida dos meus conhecimentos técnicos, quis aliviar-lhe a dor física, quando, na realidade a dor era tão maior do que isso, e não existia analgésico que a pudesse minimizar.

“Choro porque é uma menina…”, disse-me. Mas culturalmente, é motivo de contentamento, no casamento a família recebe o dote em cabeças de gado, lembrei eu… “Mas é menina, vai ter uma vida como a minha e eu não quero que ela viva como eu tenho de viver…”, explicou.

Ainda assim, não parava de agradecer à MSF e de lamentar que estivéssemos de partida. Gambela ficaria mais pobre “Quem vai cuidar de nós?”, perguntava-me.

Guardei o paracetamol para uma dor na qual pudesse ser útil, guardei o nó na garganta para mais tarde ser desatado. Segurei-lhe a mão e disse-lhe que compreendia a dor dela.

E pensei, o que será mais dilacerante? Não ter perspetivas de futuro, não ter oportunidades, ou saber que elas existem e que não estão ao seu alcance?

Incapaz de agir da forma robotizada para a qual fui treinada, e que pautou muitos dos meus dias por ali, cedi à minha profunda tristeza.

Foi um dia de dor, de tristeza, de profundas questões para as quais só encontrei uma resposta.

Continuar.

Continuar a fazer o que me levou a Gambela, e continuar convicta que o propósito vale tanto a pena.

 

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