Será que valeu a pena?

Em Gambela, na Etiópia, a médica Raquel Rosado e Silva sentiu o impacto da presença das equipas MSF nas mais pequenas coisas

Faz agora pouco mais de um ano que parti para Gambela, na Etiópia, junto da fronteira com o Sudão do Sul.

Foi a minha primeira e, até ao momento, única missão com Médicos Sem Fronteiras. Foi-me proposto apoiar, durante seis meses, o Serviço de Urgência do Hospital de Gambela. Este hospital foi construído para abranger uma área de 150 mil pessoas, mas, com as mesmas infraestruturas e semelhantes recursos humanos, estava a apoiar aproximadamente 800 mil. E onde quase 500 mil pessoas seriam refugiadas, naturais do Sudão do Sul.

Lembro-me que, quase a chegar ao fim da missão, estava cansada (estava muito cansada até), mas de coração cheio! Cheio de novas vivências, de novos amigos, daquela forte cultura, de casos clínicos que nunca veria no meu hospital em Portugal! Mas esse não foi o principal propósito que me levou à Etiópia… Comecei a pensar “será que valeu a pena”? O impacto de estarmos aqui é positivo?

E foi assim que revivi um dos momentos que mais me marcou. Uma tarde em que recebemos uma criança com aproximadamente quatro anos, trazida em braços pelo próprio pai, com convulsões (tónico-clónicas generalizadas). Uma pessoa com movimentos involuntários é sempre algo impressionante de se ver, principalmente, numa criança. Podem estar associadas a febre, o que não era o caso, e a maioria das convulsões cessa espontaneamente numa questão de segundos a minutos, o que também não se verificou. Tínhamos que medicar a doente! A farmácia hospitalar central apenas dispunha de medicação oral, que seria impossível administrar à criança inconsciente, sem recorrer à colocação de uma sonda (nasogástrica) e que iria demorar a actuar. Felizmente, a nossa farmácia tinha a medicação endovenosa com a qual foi possível tratar a criança de forma rápida e eficaz. Na prática, as convulsões traduzem uma atividade eléctrica cerebral anormal que, quando prolongada no tempo, pode conduzir a sequelas graves. Felizmente, não se verificaram quaisquer lesões e no dia seguinte a criança brincava com a irmã.

Este pode parecer um exemplo complexo, mas o impacto de estarmos presentes sentia-se nas mais pequenas coisas. Ações que nos são tão rotineiras, que damos como adquiridas no nosso dia-a-dia, como podermos lavar as mãos, podermos administrar oxigénio aos nossos doentes ou termos exames para nos auxiliarem nos nossos diagnósticos, não eram tão óbvias em Gambela, onde não havia água nem electricidade constantes. Foi nesse momento que compreendi porque é que a equipa era composta por tantos “logs” – as pessoas responsáveis pela logística. Porque, para providenciarmos cuidados médicos, temos de ter primeiro condições para o fazer.

Olho para trás e são incontáveis as vezes em que sem a presença de Médicos Sem Fronteiras, o desfecho teria sido diferente. Desde ruturas do estoque nacional de medicamentos para doenças tão comuns como a malária, ou a gestão de surtos, como o de sarampo.

Apercebi-me que a nossa presença era importante, não só no funcionamento habitual do hospital mas também como suporte às populações locais na resposta às adversidades que iam surgindo.

É o facto de em apenas seis meses ter conseguido ver, claramente, melhoria nos cuidados de saúde prestados que me faz perceber: Sim, valeu mesmo a pena!

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