Os encantos do segundo encontro

De volta ao Sudão do Sul, de onde nunca de fato parti

Os encantos do segundo encontro

13 de outubro de 2016

Minha amiga psicóloga em Malakal, no Sudão do Sul, disse que deve ser bom sinal o fato de eu estar deixando o projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no país com o coração doído. Embora parte de mim esteja feliz com o fato de estar voltando para casa depois de quatro meses incríveis entre projetos da organização – Malakal, Kinshasa e de novo Malakal -, vivo agora aquela agonia de ter de deixar para trás as pessoas maravilhosas que conheci e um esboço do que acredito possa se tornar, com o tempo, uma boa estratégia de promoção de saúde para Malakal. Infelizmente, não vou estar ali para ver tudo acontecer, mas me encho de alegria quando penso que fiz parte da concepção disso tudo.

Desta vez, fiquei apenas quatro semanas entre os projetos de Malakal e Wau Shilluk. A proposta era desenhar uma estratégia para harmonizar as atividades de promoção de saúde nos dois locais por meio de uma avaliação do que estava sendo feito e da posterior sugestão de melhorias que pudessem culminar no engajamento das comunidades que beneficiamos. Desde o início, eu soube que o plano era um tanto ambicioso, e que cada segundo do tempo que eu teria no projeto seria extremamente valioso. Mas, parafraseando minha querida chefe em Malakal, nós devemos sempre ser ambiciosos, dar o nosso melhor e nos confortarmos com o resultado possível. E como eu estava rodeada por uma contagiante onda de entusiasmo – amigos animados com o fato de estarmos juntos novamente e equipes contentes diante da possibilidade de retomarmos os trabalhos -, foi fácil entrar no ritmo e investir toda a minha energia naquilo. Então, além do complexo das Nações Unidas para deslocados internos em Malakal, que se chama Protection of civilians – PoC (Proteção aos civis, em tradução literal para o Português), que eu já conhecia, eu teria de me aprofundar nas realidades da cidade de Malakal, onde estávamos observando um aumento populacional decorrente da insegurança nas regiões de seu entorno, e de Wau Shilluk, um vilarejo próximo ao rio, pouco mais ao norte.

Foi uma felicidade indescritível reencontrar a equipe de agentes comunitários de saúde que eu tinha deixado para trás após minha primeira visita a Malakal, quando tivemos de reduzir nossa equipe por questões de segurança, em julho. Conversei muito com cada um deles para entender o que pensavam sobre o trabalho que estavam fazendo e quais as sugestões que gostariam de propor para que melhorássemos nossas atividades. E, pelo que me disseram, percebi que estávamos alinhados: além de ferramentas para trabalhar em melhores condições, obviamente, eles queriam ampliar a cobertura das áreas onde trabalhamos com mensagens de saúde. Claramente, eles sabiam que podíamos fazer mais e melhor. Foi então que começaram a me ajudar a identificar os líderes comunitários que teriam de ser envolvidos em conversas com MSF e me levar com eles a campo para que visse como estavam trabalhando. Foi caminhando juntos e após longas conversas que eles perceberam o papel fundamental que desempenham para a comunidade: eles são o elo entre uma organização que oferece cuidados de saúde gratuitos e as pessoas. E eles são as pessoas. Este é, certamente, o aspecto mais fascinante de toda essa experiência: a proximidade que se pode ter com a comunidade, uma vez que ela está ali representada por nossos profissionais nacionais. Quando falamos sobre as condições de vida extremamente precárias a que essas pessoas estão submetidas, eles estão vivendo essa situação; quando pensamos sobre o quão excruciante deve ser não poder fazer planos, não ter quaisquer garantias sobre o futuro, estamos falando sobre a realidade deles. E tudo isso acontece bem ali, diante de meus olhos. Desta vez, minha segunda vez, quis garantir que eu investiria tempo suficiente para realmente ver tudo e me permitir sentir. E eu vi a enorme tristeza que nasce como consequência da falta de esperança; eu vi a angústia do luto de um pai pela morte de uma filha levada por uma doença que ninguém foi capaz de identificar; vi a frustração de alguém que deseja profundamente aprender e ir à escola, mas não tem ali oportunidade para tanto; e vi a dor de ser infectado por uma doença cujo tratamento é longo e que impõe uma série de restrições, incluindo a impossibilidade de fazer a única coisa que permite à cabeça se concentrar em algo para além daquela situação toda: trabalhar. Estando ali de verdade, pude oferecer meus ombros para apoiá-los e meu tempo para ouvir suas histórias. Gosto de pensar que começamos a lidar com uma pequena fração desses problemas juntos, uma vez que os ajudei a entender que eles podem ter um impacto positivo na comunidade, que é deles! Nós definitivamente não temos como colocar um fim à guerra, mas podemos empoderar as pessoas para cuidarem umas das outras, fazendo uso dos serviços que estão ali disponíveis para elas para melhorar suas condições de vida. E tem muita gente boa envolvida nisso: são mais de 30 ONGs ali, ralando diariamente dentro do complexo da ONU. Então, começamos juntos a estruturar um plano para transformar as atividades de sensibilização que já conduzíamos em algo mais significativo: a porta de entrada para realmente entender o comportamento das pessoas na busca por saúde e identificar suas necessidades. Ainda estamos no começo de tudo isso, mas, um passo por vez, chegaremos lá.

Um belíssimo passeio de barco de 30 minutos com a bandeira de MSF hasteada e chegamos a Wau Shilluk. Foi delicioso estar rodeada de árvores e sentir a brisa leve que muda a temperatura quando o sol se põe. O supervisor dos agentes de saúde me levou para uma longa caminhada pela comunidade e, à medida que explicava o que aconteceu com ele e com sua família quando fugiram para Wau Shilluk, no início desta guerra, no final de 2013, a resiliência dessas pessoas me deixava de queixo caído. Aqueles que podiam, já enviaram suas famílias para longe do Sudão do Sul, e os que ficaram tentam encontrar algum significado para estarem ali e continuam enfrentando diariamente desafios como insegurança alimentar, já que são totalmente dependentes de ajuda humanitária. Mas sempre têm um sorriso para lhe oferecer no momento em que você estende a mão para cumprimentá-los. Nosso supervisor me disse que o que ele mais aprecia no trabalho com MSF são os treinamentos a que tem acesso. Ele quer estar bem-preparado para o dia em que as coisas vão estar melhores e ele vai ter a chance de procurar uma ocupação fora dali. Em Wau Shilluk, no que diz respeito à promoção de saúde, nós também teremos de engajar a comunidade, mas a equipe é mais organizada, e acredito que, se bem orientados, eles se sairão muitíssimo bem.

Com o coração apertado, mas aquecido eternamente por tudo o que vivi, é hora de partir novamente. Voltar ao Sudão do Sul depois de ter sido evacuada foi um presente muito especial, uma oportunidade de fechar um ciclo. Ou melhor, dar continuidade a algo que foi subitamente interrompido. Senti como se nunca tivesse saído dali. O cheiro do aeroporto em Juba, as tonalidades de cinza do PoC, os calorosos apertos de mão e sorrisos, os inúmeros abraços e as risadas escrachadas dos meus mais queridos amigos internacionais e aquele barulhinho intrigante que os sul-sudaneses fazem quando estão concordando com você eram todos muito familiares. Na volta para casa, parte de mim fica aqui, conectada de forma muito especial com esse país e com essas pessoas. Se algum dia eu voltar, espero ainda ser capaz de reconhecer cheiros e sorrisos, mas ver menos sofrimento. Gostaria de reencontrar as pessoas tendo a oportunidade de viverem suas vidas dignamente, em paz. E não consigo evitar o otimismo, ainda que contra tantas possibilidades, depois de ter passado tempo com eles e aprendido tanto. Realmente me senti em casa em Malakal. E já sinto saudades desse lugar.

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