“Quando finalmente chegou ao hospital para uma cesariana, ela e o bebê já haviam morrido”

O pediatra Erwin Lloyd, hoje diretor da Unidade Médica Brasileira (Bramu) de MSF, fala sobre suas experiências em Mianmar e a exclusão do povo rohingya do acesso à saúde

“Quando finalmente chegou ao hospital para uma cesariana, ela e o bebê já haviam morrido”

Me chamo Erwin Lloyd e trabalho há 13 anos com Médicos Sem Fronteiras (MSF). Hoje, sou diretor da Unidade Médica Brasileira (Bramu), mas já participei de mais de 20 projetos no terreno junto a MSF. Quatro de minhas experiências com a organização foram em Mianmar, onde estive primeiramente como médico e, pela última vez, como conselheiro médico, entre 2014 e 2016. Nos períodos em que estive no país, pude observar muitos dos abusos aos quais a minoria rohingya era submetida.

Quando MSF ainda trabalhava com alguma – ainda que limitada – liberdade no estado de Rakhine, em Mianmar, tínhamos  diversos projetos na região. Naquela época (2008-2009) já ouvíamos de pacientes e colegas rohingyas histórias relatando violações de direitos: falta de acesso à educação, restrições de movimento, casos de extorsão, exigências de pagamentos astronômicos para registrarem um casamento. Se um rohingya se envolvesse com uma birmanesa, era preso. Famílias podiam ter somente dois filhos e, caso ultrapassassem esse número, pagavam uma multa.

O acesso a cuidados médicos sempre foi uma das maiores dificuldades. Há somente um hospital na cidade de Maungdaw, onde o serviço é gratuito para birmaneses, mas aos rohingyas o tratamento é negado – a não ser que tenham dinheiro para pagar pela hospitalização. E, mesmo que um rohingya tivesse o dinheiro, antes de chegar a Maungdaw, ele teria que passar por mais de 13 postos de controle se morasse, por exemplo, em Inn Din, mais ao sul. Em cada um desses postos, teria que apresentar uma autorização de passagem e dar algum dinheiro aos guardas. Um de nossos colegas, cuja esposa estava grávida, teve que passar por esse processo. Quando finalmente chegou ao hospital para uma cesariana, ela e o bebê já haviam morrido.

MSF tentou mitigar a falta de acesso para essas pessoas através de clínicas satélite e clínicas móveis. Duas equipes visitavam por dias as vilas isoladas, fornecendo tratamento de malária e cuidados básicos. As equipes viviam em barcos para poder atravessar as florestas ou dormiam em escolas para fornecer cuidados essenciais nessas comunidades mais remotas.

Quando a atuação de MSF foi suspensa em fevereiro de 2014, todas as atividades foram interrompidas no estado de Rakhine – incluindo o tratamento para HIV e TB. Foram necessários 11 meses para negociar a reabertura das clínicas. Em dezembro do mesmo ano, reabrimos uma clínica em Maungdaw. Durante os meses seguintes, reconstruímos clínicas em duas outras áreas e enviamos clínicas móveis a cinco localidades onde as autoridades nos deram permissão. Nesse ínterim, os rohingya foram colocados em acampamentos e centros de detenção. O estado desses campos de deslocados é indescritível.

Reconto essas histórias pensando nos colegas e amigos com vidas apagadas pela perseguição, anulados pelo simples fato de pertencerem a um grupo étnico. Em 25 de agosto de 2017, uma crescente onda de violência obrigou novamente centenas de milhares de rohingyas a fugirem do estado de Rakhine. Até o momento, mais de 650 mil pessoas cruzaram a fronteira com Bangladesh, em busca de alguma segurança. As histórias de sofrimento que escutamos não são inteiramente novas. Mas elas nos lembram, mais uma vez, o quanto qualquer tipo de perseguição – como aquelas motivadas pela origem ou crença de um indivíduo – é algo inaceitável neste ponto da História.
 

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