Um dia de cada vez

A gerente de comunicação Gabriela Roméro fala sobre os desafios de saúde no leste da RDC

Por volta de abril, telefonei para a minha mãe para avisar que provavelmente ficaria incomunicável por alguns dias. Eu estava indo para o interior da República Democrática do Congo (RDC) – país onde já estava desde fevereiro – para acompanhar uma grande campanha de vacinação.
 
Minha mãe ficou animada.
– Que bom, você acha que vai conseguir se vacinar também?
– Não é COVID-19, mãe.
– Ebola de novo?
– Não, sarampo.
 
O sarampo é uma doença para a qual já existe vacina desde os anos 1960. Ainda assim, continua sendo um dos maiores causadores de morte entre crianças com menos de 5 anos de idade em países como a RDC. A vacinação de rotina encontra diversos obstáculos, que vão desde a dificuldade de se chegar aos centros de saúde (o que o filme de MSF “Caminhos da Vacina” mostra muito bem) até a desconfiança que aumentou nos últimos tempos por causa da pandemia do novo coronavírus. Não é raro nas atuais campanhas de imunização encontrar pessoas nas comunidades que resistem a vacinar seus filhos. Elas têm medo que eles estejam sendo usados como “cobaias” para a vacina de uma doença que acreditam que não chegou ao interior do país.
 
Às vezes, a impressão é de que tudo pode acontecer na RDC (como, aliás, frequentemente acontece). No período deste meu último trabalho com MSF no país, além do recrudescimento da violência nas províncias do leste, houve nada menos do que uma nova epidemia de Ebola e uma erupção vulcânica que levou ao deslocamento de centenas de milhares de pessoas. Porém, ainda são infecções respiratórias e doenças diarreicas os grandes culpados pela maior parte das queixas de saúde. A malária é outra grande vilã: a RDC fica atrás apenas da Nigéria em número de casos e de mortes todos os anos. Num país onde o acesso à saúde é pago, muitas vezes as pessoas acometidas por essas doenças sequer chegam a buscar ajuda médica.
 
Voltando à campanha de vacinação contra o sarampo, acompanhei como gerente de comunicação do terreno uma equipe de promoção de saúde em áreas remotas. De comunidade em comunidade, ela se reunia com a população e respondia a cada uma das inquietações. Só assim tínhamos alguma chance de adesão da população à campanha quando chegássemos dias depois com as vacinas.
 
É um trabalho contínuo e repetitivo. A impressão às vezes é de estar no filme “O Feitiço do Tempo”, em que o Dia da Marmota recomeça invariavelmente da mesma forma. Porém, uma parte da história frequentemente esquecida é que o protagonista usa essa repetição para a cada dia entender melhor a mulher por quem é apaixonado e, com pequenas mudanças na forma de abordá-la, conquistá-la afinal.
 
Assim vamos, a cada dia entendendo melhor cada comunidade, suas dúvidas e seus medos. A cada dia tentando responder melhor às suas questões e mostrar o quanto a vacinação é a melhor forma de prevenção. O trabalho não se encerra nessa campanha de vacinação ou na próxima. Mas, talvez, cada vez estaremos mais preparados para garantir uma cobertura vacinal que possa proteger as crianças da RDC. O esforço tem seus frutos: do fim de março a meados de maio, em Salamabila, área onde acompanhei alguns dias da campanha, vacinamos nada menos que 24.973 crianças e adolescentes entre 6 meses de vida e 15 anos de idade.
 
Gabriela Roméro foi coordenadora de conteúdo de MSF-Brasil e, em 2019, atuou como gerente de comunicação na resposta de emergência ao ciclone Idai, em Moçambique; em 2020, participou projetos da COVID-19 no estado do Amazonas; no mesmo ano, atuou na comunicação da resposta à epidemia de Ebola, na República Democrática do Congo; e, mais recentemente, em 2021, compôs a equipe de comunicação em diferentes projetos de emergência na RDC, como a resposta à erupção do vulcão Nyiragongo e ao surto de sarampo no país.

 

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