A folha de taro como uma metáfora para a existência rohingya: uma longa conversa de oito anos

As comunidades Rohingya lançaram, com o apoio da MSF, um novo símbolo de identidade e resiliência: a folha de taro, cujo significado é explicado nesta conversa entre dois colegas

Folha de Taro - resistência Rohingya
© Victor Caringal/MSF

Ruhul Amin e Arunn Jegan conheceram-se há oito anos no Bangladesh, quando mais de 700 mil rohingya chegaram ao país em fuga de uma campanha de violência extrema dirigida pelo exército de Myanmar. Ao longo de quase uma década, trabalharam lado a lado em projetos que desafiam os limites do que significa prestar cuidados. Aqui partilham a parceria criativa e a amizade que continuam a construir. Ambos são colegas na Médicos Sem Fronteiras (MSF).

 

Arunn: Quando conheci o Ruhul, ele e a família tinham acabado de atravessar a fronteira para o Bangladesh apenas com a roupa que traziam vestida. Eu não o conhecia, mas ele disse-me que tinha trabalhado com a MSF em Myanmar e senti logo uma ligação. Partiu-me o coração ouvir como tinha perdido tudo.

Indiquei-lhe o escritório onde podia levantar o salário, ele disse-me que precisava de água e depois seguimos caminhos diferentes.

Ruhul: Quando conheci o Arunn, nem o vi bem. Vi apenas um homem de pele escura que disse viver na Austrália. Não me lembrava do nome dele nem sabia que era tâmil, uma comunidade que também sofreu atrocidades. A minha cabeça estava em modo sobrevivência. Onde íamos dormir? O que íamos comer? Estava completamente exausto. Sentia-me como se estivesse a flutuar num oceano, sem saber para onde podia ir. Pensava que voltaria para casa, mas nunca imaginei que, oito anos depois, ainda não conseguiria regressar à minha terra.

 

A minha cabeça estava em modo sobrevivência. Onde íamos dormir? O que íamos comer? Estava completamente exausto.”

Ruhul

 

Crianças rohingya seguram folhas de taro num campo de refugiados perto de Cox’s Bazaar, Bangladesh. © MSF, 2025

 

Esse breve encontro marcou o início de uma parceria duradoura. Ruhul e Arunn trabalharam juntos em respostas de emergência e em programas humanitários de longa duração. Mas havia uma pergunta à qual regressavam sempre: o que significa cuidar? Os cuidados médicos serão sempre essenciais, mas sobreviver não é o mesmo que viver e os rohingya enfrentam dificuldades para conseguir ambos.

 

Ruhul: Em 2017, a MSF foi uma das primeiras organizações a começar a trabalhar nos novos campos criados após o êxodo em massa dos rohingya de Myanmar. Em duas semanas, montámos uma rede de profissionais de saúde comunitários. Tínhamos uma tarefa simples: levar os doentes ao hospital e indicar onde podiam encontrar ajuda médica. As pessoas chegavam com ferimentos de bala, golpes de faca e infeções sem tratamento. Não havia latrinas, abrigos nem estradas.

Lembro-me de três mulheres caídas inconscientes na lama, com moscas por cima. Paguei 600 taka (cerca de quatro euros) do meu próprio bolso a membros da comunidade para as levarem ao hospital da MSF. Só tínhamos ambulâncias humanas — pessoas que transportavam os doentes em macas improvisadas de bambu ou às costas.

Arunn: Foi complicado. Fez-me lembrar a deslocação da minha própria comunidade: centenas de milhares de famílias a carregar o que conseguiam; pessoas com ferimentos de bala; o cheiro a fumo ainda entranhado na roupa; famílias desesperadas à procura dos filhos depois de se perderem no caos. Estávamos a construir hospitais em seis semanas, bombas de água em poucos dias. Havia pouco tempo para parar e sentir alguma coisa.

Ruhul: Eu lembro-me de ter sentido algo. Quando voltei a encontrar o Arunn, anos mais tarde, percebi o que era: a força das relações que se constroem ao longo do tempo.

 

Estávamos a construir hospitais em seis semanas, bombas de água em poucos dias. Havia pouco tempo para parar e sentir alguma coisa.

– Arunn

 

Trabalhadores rohingya enrolam uma parede decorativa tecida em bambu. © Victor Caringal/MSF, 2025

 

Com o passar dos anos, as necessidades mudaram. Os ferimentos de bala sofridos em Myanmar transformaram-se em condições médicas crónicas. Grandes surtos de difteria, sarna e hepatite C começaram a afetar a comunidade, de forma rápida e descontrolada. A comunidade rohingya enfrentava agora novos desafios, próprios da vida de um refugiado.

As infraestruturas melhoraram, mas as perspetivas de futuro tornaram-se mais sombrias. A pandemia COVID-19 e as políticas de contenção trouxeram restrições de movimento, uma vedação de arame farpado e uma ajuda cada vez mais reduzida.

O campo, que hoje acolhe mais de um milhão de refugiados rohingya — alguns há décadas, outros há apenas meses — transformou-se num bairro de bambu e lonas. Bebés nascem e as pessoas envelhecem num limbo.

Ruhul e Arunn questionam-se: o que sustenta uma pessoa quando o financiamento desaparece? Quando o estatuto legal não muda há 40 anos? O que significa, de facto, ser apátrida — e o que isso representa para quem permanece ao lado dessas pessoas?

 

Arunn: Voltei a encontrar o Ruhul em 2019. Foi aí que senti que a nossa ligação cresceu. Ele disse-me uma vez que demorou quatro anos até se sentir seguro o suficiente para me contar o que significava, na realidade, ser apátrida.

Ruhul: Eu não lhe chamava apatridia. Chamava-lhe simplesmente vida. Não esperava ter educação. Não achava que nos fosse permitido receber cuidados médicos. Não esperava liberdade de movimento. Pensava que educação e oportunidades eram apenas para alguns. A nossa imaginação sobre o que a vida podia ser era muito limitada. Só quando deixámos a nossa terra é que percebemos até que ponto nos tinham negado os nossos direitos. Essa consciência é dolorosa. Não fere apenas o corpo. Fere também a mente.

 

Médicos Sem Fronteiras Rohingya
Visita do ex-Presidente Internacional da MSF, Christos Christou, ao projeto simbólico das folhas de taro no Bangladesh. © Victor Caringal/MSF, 2025

 

Desta conversa surgiu uma ideia. Se a ajuda médica serve para curar o corpo, o que cura a parte de nós que questiona se temos valor?

Decidiram criar um projeto enraizado na existência, na cultura e nas histórias das pessoas, para ajudar os rohingya a expressarem-se, resistirem à obliteração e manterem-se ligados a quem eles são.

Encontraram artistas australianos e rohingya cujo trabalho e visão estavam ancorados nesses princípios e, juntos, formaram a Creative Advocacy Partnership (CAP).

 

Num lugar onde as pessoas são privadas de nacionalidade, de mobilidade e até de cuidados médicos, o simples ato de moldar barro, entrelaçar bambu ou contar uma história torna-se um ato de resistência e dignidade.”

– Ruhul

 

Ruhul: Nos nossos workshops começou a surgir um símbolo: a folha de taro, inspirado num provérbio rohingya, “Honsu-fathar Phani”, que diz que nem a água deixa marcas na sua superfície verde.

Arunn: Ao toque, a folha de taro é cerosa, o que faz com que a água forme gotas e escorra sem deixar vestígios.

Ruhul: É um símbolo de como o mundo torna os rohingya apátridas e tenta não deixar rasto de nós. Mas continuamos aqui. E deixamos a nossa marca.

Arunn: Adultos, crianças e artistas rohingya fizeram as próprias folhas de taro. Ver as pessoas transformarem-se através da criatividade foi profundo. Um ceramista rohingya contou-nos que a casa dele foi destruída há oito anos, mas só fugiu recentemente. O peso dessa lenta supressão é insuportável. E, mesmo assim, neste espaço partilhado, as pessoas começaram a abrir-se. Até as tensões entre identidades religiosas e étnicas começaram a abrandar. Esse é o poder de criar em conjunto.

Ruhul: Mas não se trata apenas de nos expressarmos. Trata-se de sobrevivência. As ONG vão sair. O financiamento vai acabar. Não queremos depender de ONG para o resto da vida; sentimos vergonha em depender dos outros. Mas, se permanecermos ligados à nossa cultura, à nossa identidade, às nossas relações, elas também podem sobreviver. As relações são o medicamento mais importante.

Arunn: O Ruhul disse-me que sente a luz dentro dele a apagar-se. Não porque tenha desistido, mas porque o peso da desconexão — da mobilidade, dos cuidados, das oportunidades — está a tornar-se cada vez mais pesado. Ouço muito mais as palavras “destino” e “fado” do que “esperança” e “futuro”.

Ruhul: Não estou sozinho, e muitos nos campos sentem o mesmo. Para nós, este projeto não é uma atividade secundária; é uma forma de manter a luz acesa. Continuamos a enfrentar enormes desafios de saúde, com cortes nas rações alimentares, febres sem explicação e condições de vida precárias. Os cortes de financiamento da USAID e do Reino Unido estão a comprometer  o nosso futuro — dezenas de centros de saúde fecharam. Até o meu filho precisou de cuidados urgentes, e ninguém cobriu a cirurgia.

Arunn: Isto não se trata de substituir a ajuda médica pela advocacia criativa. Trata-se de reconhecer que, sem as duas dimensões, o que resta de um povo depressa se torna irreconhecível. O cuidado holístico reconhece a necessidade humana de ser visto, de ligação e de pertença — não apenas de pensos limpos ou de rações nutricionais. É para aí que o trabalho humanitário tem de avançar.

Ruhul: Num lugar onde as pessoas são privadas de nacionalidade, de mobilidade e até de cuidados médicos, o simples ato de moldar barro, entrelaçar bambu ou contar uma história torna-se um ato de resistência e dignidade. É como dizer: continuamos aqui. Continuamos a sentir. Continuamos a ter importância.

Partilhar

Relacionados

Como Ajudar