Agok: alguns pacientes serão lembrados para sempre

A cirurgiã de MSF Heidi Wikstrom compartilha um relato sobre seu trabalho no hospital de Agok, uma área administrativa especial entre o Sudão e o sul do Sudão

Agok: alguns pacientes serão lembrados para sempre

Qual é a parte mais difícil do trabalho de um cirurgião em campo? Não é apenas o fato de você se deparar com tantos pacientes com ferimentos e doenças terríveis que não podem ser curadas. É o excesso de experiências únicas na vida. No projeto em que trabalhei durante sete semanas, conheci centenas de pessoas novas. Provavelmente nunca mais vou vê-las novamente, mas nunca esquecerei de algumas delas.

Havia essa mulher, de 30 anos de idade. Ela já estava na enfermaria quando cheguei a Agok.

A mulher estava gravemente doente, com uma infecção pós-cesariana em sua cavidade abdominal. Ela parecia muito mal quando a vi pela primeira vez. Imaginei que estivesse com alguma infecção. Ela parecia perto da morte.

Ayak e a bolsa de Bogotá

A mulher já havia sido operada várias vezes e, durante a primeira semana do meu período em Agok, eu a levei ao centro cirúrgico duas vezes.

Após a segunda cirurgia, ela colocou o que é conhecido como “bolsa de Bogotá”. Todos estavam bastante convencidos de que ela não sobreviveria.

Uma “bolsa de Bogotá” é essencialmente uma bolsa plástica estéril, colocada sobre uma ferida no abdômen. A ferida é deliberadamente deixada aberta. Isso é feito quando todos os outros meios para controlar uma infecção falham. Esses pacientes estão sempre gravemente enfermos e são atendidos em unidades de terapia intensiva.

Esta mulher, Ayak (nome fictício), tornou-se minha paciente “pessoal” desde que tomei a decisão de colocá-la em tratamento de abdômen aberto. Também fiz a maioria das trocas diárias de seus curativos durante a minha estadia no projeto.

Ayak tinha muitos problemas e, apesar de ter uma boa nutrição, ela perdia peso constantemente. Todo dia eu trocava os curativos, limpava e tentava não machucá-la muito: sua pele ficara muito sensível e ela tinha feridas nas costas.

A encruzilhada

Eu sabia que ela estava sofrendo e me senti estranhamente culpada por meus esforços malsucedidos em ajudá-la. Tentei não olhar muito em seus olhos, em parte porque eles pareciam grandes demais em seu rosto faminto.

Então, um dia, ela segurou meu braço enquanto eu a limpava. Ela olhou para mim e disse, com a ajuda de uma enfermeira tradutora, que não permitiria que mais ninguém fizesse isso além de mim.

Depois de escapar da encruzilhada da morte e apresentar melhora, Ayak, um dia, surpreendentemente, estava ganhando peso.
Outro dia, soube que ela estava saindo da enfermaria e assistindo televisão. Nossa inteligente enfermeira austríaca inventou para ela uma cinta especial que ela poderia usar quando não estivesse deitada na cama. Parecia funcionar muito bem, embora tivesse que ser lavada todas as noites por causa da sujeira da fístula do intestino delgado.

De repente, Ayak estava tão bem que, todas as manhãs, depois de trocar de roupa, ficava com a cinta e podia sair da enfermaria para socializar com os outros pacientes e visitantes.

Dizendo adeus

No início, Ayak sempre parecia muito triste quando seu bebê era levado para ela. No final do meu período no projeto, isso mudou completamente. Agora, foi uma delícia vê-la cercada por sua família com o bebê no colo.

Os olhares nos rostos dos parentes mudaram e a tensão que uma vez senti ao explicar-lhes os fatos complicados sobre a situação de sua ente querida também desapareceu.

Eu não gosto de despedidas. Muitas vezes me sinto estranha e não encontro nada apropriado para dizer nessas situações. Mas eu queria essa despedida.

Comprei algumas roupas para o filho pequeno de Ayak no mercado, dei para ela e tirei algumas fotos dela e de sua família.
Provavelmente nunca voltarei a vê-la, mas pelo menos dar uma olhada de vez em quando nesta bela foto e me surpreender com quantas pessoas diferentes – de partes improváveis do mundo – dominam os cantos do meu coração.

 

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