Como é a vida dentro do maior campo de deslocados do Sudão do Sul

Equipes de MSF trataram mais de 80 mil pessoas em Bentiu entre janeiro e outubro de 2020

Como é a vida dentro do maior campo de deslocados do Sudão do Sul

*Os nomes dos personagens foram alterados por medidas de segurança.

Em um abrigo feito com vegetação local e material plástico no campo de Proteção de Civis (PoC) em Bentiu, no norte do Sudão do Sul, uma viúva cozinha para seus filhos. Nyamal*, 43 anos, está preparando o prato tradicional wualwual, uma espécie de mingau. Usando um vestido amarelo vibrante, ela se senta em um banquinho perto da entrada. Dessa forma, pode olhar para as crianças brincando do lado de fora e controlar a panela sobre a brasa no chão.

“Decidi vir para o campo em 2014 porque Bimruok, em Bentiu Town, não era um lugar seguro para meus filhos. Não podíamos ficar em uma zona de guerra. Se houvesse fogo cruzado, todos estaríamos mortos”, avalia.

O conflito armado eclodiu no país em dezembro de 2013. Como Nyamal, milhares de pessoas foram forçadas a fugir de seus vilarejos, buscando proteção nas bases das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS) em diferentes partes do país. Bentiu é o maior campo, hoje hospedando cerca de 97.300 pessoas.

A casa de Nyamal é maior do que muitos outros abrigos que as equipes de MSF visitam quando vão à comunidade para prevenir e tratar doenças comuns na área, como diarreia e malária. Tem três camas para acomodar toda a família em dois quartos. No meio, há um corredor onde ela cozinha e armazena utensílios domésticos, bem como recipientes de água. Não há banheiro, chuveiro e eletricidade.

Apesar da relativa segurança que a presença da ONU traz, em 2018 um grupo de homens armados invadiu a casa ameaçando a família e levando todos os seus pertences. “Desde então, nunca mais dormi bem. Eu sempre imagino que outros possam vir”, revela.

Condições de vida abaixo do padrão e doenças evitáveis

MSF administra um hospital com 116 leitos em Bentiu, com departamento de internação e pronto-socorro para crianças e adultos, além de uma sala de cirurgias. Os pacientes cirúrgicos incluem pessoas de outras partes do Sudão do Sul, encaminhadas por equipes de MSF de projetos em Pieri e Lankien e transferidas de avião em meio a confrontos violentos em curso no estado de Jonglei.

O hospital também oferece cuidados maternos, inclusive para partos complicados, bem como serviços para sobreviventes de violência sexual, cuidados de saúde mental, tratamento para HIV/Aids, tuberculose e desnutrição.

Em 2019, mais de 49 mil pessoas (do campo e de fora dele) receberam atendimento na unidade. De janeiro a outubro de 2020, as equipes de MSF trataram mais de 80 mil pessoas, a maioria com malária e doenças respiratórias. MSF também administra um poço de água para uso da comunidade e distribui sabão e outros itens de higiene.

Em 2019, MSF realizou uma pesquisa no campo para avaliar as condições de vida. O estudo, que terminou em março de 2020, mostrou que menos de 60% das famílias tinham seu próprio jarro de água para limpeza após defecação. Os riscos para a saúde apresentados por essas condições de vida precárias incluem doenças diarreicas, hepatite E, cólera, febre tifoide, tracoma e infecções de pele. Muitas podem ser evitadas com melhorias de água e saneamento – algo que MSF tem pedido repetidamente.

Crianças menores de 5 anos são as mais vulneráveis. Entre as internadas no hospital de MSF este ano, 562 estavam gravemente desnutridas, muitas também tinham outras doenças evitáveis. Algumas nasceram prematuramente porque suas mães também estavam doentes.

“As mulheres não podem cuidar dos filhos em tempo integral porque passam horas catando lenha fora do campo ou realizando outros trabalhos manuais para ganhar a vida. É assim que elas ganham dinheiro para sustentar suas famílias”, explica Philippe Manengo, coordenador do hospital de MSF em Bentiu. “Essas crianças muitas vezes nunca tiveram um lugar limpo para dormir ou brincar. A exposição de longo prazo a doenças crônicas, juntamente com a desnutrição, diminui sua imunidade, tornando-as mais suscetíveis a outras doenças. Apesar de todos nossos esforços, este ano perdemos 9% das crianças desnutridas em nosso hospital. É muito angustiante e preocupante.”

Um futuro incerto

O acordo de paz assinado em 2018 renovou os debates sobre o retorno de pessoas deslocadas aos seus vilarejos. Em julho de 2020, a UNMISS anunciou que pretendia iniciar um processo de entrega dos cinco campos no país. Isso significa que os campos permanecerão, mas com responsabilidades de gerenciamento e segurança transferidas da ONU para o governo nacional. O anúncio gerou reações negativas das pessoas nos campos de Bor e Juba, onde a transferência já começou, com muitos dizendo que não foram informados da retirada das tropas da ONU e agora vivem com medo.

Em Bentiu, equipes de MSF têm ouvido preocupações semelhantes levantadas por pacientes e outros integrantes da comunidade, principalmente sobre condições de segurança e proteção, uma vez que a ONU não estará mais lá. Nyakoang*, uma mulher de 30 anos, foi algumas vezes à maternidade de MSF. Ela mora em um quarto com 16 m² compartilhado por três famílias e oito pessoas no total. “Não é o tipo de vida que desejo para meus filhos e para mim. Eu quero poder ir para um lugar onde eu possa estudar enquanto meus filhos estão seguros e que eles possam ir para a escola. Educação é o que pode mudar nossas vidas.”

Nyakuoth*, uma mulher de 50 anos de Rubkona, acrescenta: “A ONU reuniu pessoas aqui e disse-nos que vai sair do campo. Dissemos a eles que, se eles saíssem, haveria danos. Eles não explicaram como eles vão fazer isso nem quando vai acontecer. Não sei se seremos protegidos.”

Em meio à incerteza, as equipes de MSF asseguram à comunidade que o atendimento médico ao povo de Bentiu continuará, independentemente do status de proteção da ONU.

 

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