Médica responde dúvidas sobre a doença de Chagas

No Dia Mundial do Combate a Chagas, Lucia Brum compartilha conhecimentos sobre esta doença negligenciada

 “Sempre soube que queria trabalhar contribuindo para a vida das pessoas”, conta Lucia Brum, referente em doenças infecciosas emergentes da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). Formada em Medicina e mestre em Medicina Tropical, Lucia estabeleceu-se por dois anos no Amazonas para conhecer o contexto epidemiológico do Brasil. Ali, sua intimidade com a doença de Chagas foi ganhando força. “No mestrado, a gente escuta dos professores que é preciso namorar todas as doenças durante o primeiro ano e casar quando nos apaixonarmos. Foi, então, que me casei com a doença de Chagas”. Já tendo atuado com populações negligenciadas em ocasiões anteriores – ela chegou a ficar embarcada por 45 dias na fronteiras entre o Acre e o Peru atendendo, sozinha, uma população indígena de 2.500 pessoas -, em 2009, Lucia juntou-se a MSF. Hoje, no Dia Mundial do Combate à doença de Chagas, ela responde às perguntas enviadas por usuários das redes sociais sobre a doença, que, embora pouco conhecida no resto do mundo, é, de longe, a mais letal doença parasitária da América Latina.
 

Aproveite e apoie aqui a campanha pelo diagnóstico e tratamento da doença de Chagas.

1.    Como a doença de Chagas é transmitida?

As formas de transmissão de maior importância epidemiológica são: vetorial, por meio das fezes – e, não da picada, como a maioria das pessoas supõe – do barbeiro, inseto hospedeiro do parasita; por transfusão de sangue; de mãe para filho, de forma congênita; e oral por meio da ingestão de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro.

2.    Como é diagnosticada?

A doença têm duas fases: a aguda e a crônica. Embora o diagnóstico de ambas seja realizado por meio da análise laboratorial de amostras de sangue, há uma diferenciação: na fase aguda, o diagnóstico é feito por meio do isolamento do parasita (Trypanosoma cruzi) do sangue, enquanto na fase crônica, o diagnóstico é realizado pela detecção de anticorpos.  

3.    Uma pessoa pode estar infectada sem saber?

Sim. Infelizmente, é muito comum, porque a maioria dos casos são assintomáticos, mesmo na fase aguda. Pode demorar até 20 anos para que uma pessoa descubra que tem um problema no coração ou no aparato digestivo. Ou, de repente, a pessoa pode doar sangue ou fazer um transplante e acaba descobrindo que tem a doença. Aproximadamente 90% das pessoas infectadas não sabem que têm a doença.

4.    Como se dá o tratamento? Houve avanços recentes?

Hoje, temos apenas dois medicamentos disponíveis. No Brasil, somente um, o benzonidazol. Em outros lugares do mundo, pode-se encontrar o nifurtimox. Podemos citar como avanço recente a formulação pediátrica do benzonidazol, que é a adaptação do medicamento para crianças até 20 kg ou menores de 2 anos. Ano passado, tivemos o primeiro paciente tratado no mundo inteiro com a formulação pediátrica: no Paraguai, um bebê prematuro de 1,2 kg com infecção congênita foi submetido ao tratamento, e foi curado.

5.    Chagas tem cura? Existe vacina?

A doença de Chagas tem cura. Quanto mais precoce for o diagnóstico e o quanto antes for iniciado o tratamento, maiores as chances. Quanto maior o tempo de infecção, menores as chances de cura e mais difícil será a demonstração da efetividade do tratamento, pois mesmo estando curado, você continuará gerando anticorpos. E essa é a grande dificuldade: não temos um teste de cura; o anticorpo pode ser detectado por 20 ou 30 anos. Essa limitação afeta também o desenvolvimento de novos tratamentos, pois não podemos medir a efetividade na fase crônica de longa duração. Mas, na fase aguda, a chance de cura é de praticamente 100%. Não existe vacina ainda, infelizmente.

6.    Quais as formas de evitar a transmissão? É possível erradicar a doença?

Para erradicar a doença, teriam de ser eliminadas mais de 100 espécies de mamíferos de pequeno e médio porte, que são os chamados “reservatórios” do parasita. Complicado, não? O que se pode fazer é interromper, controlar e vigiar os modos de transmissão nas áreas endêmicas, melhorando as condições de moradia, ampliando o acesso ao diagnóstico e ao tratamento na atenção primária de saúde, controlando os bancos de sangue e as doações de órgãos. Ainda assim, erradicar o inseto transmissor é praticamente impossível, pois já foram identificadas mais de 140 espécies de barbeiros, todas potencial transmissoras da doença.

7.    Quais os países em que a doença é mais prevalente?

A doença é considerada endêmica em 21 países. Atualmente, com a globalização, a doença já está presente em países considerados não endêmicos, como Espanha, Japão França e Itália, entre outros, onde os imigrantes portadores crônicos da infecção podem transmiti-la pelo sangue, por transfusão, por exemplo, ou de mãe para filho.

 8.    Quais as regiões mais vulneráveis à doença no Brasil? Como está a situação epidemiológica do país?

O Brasil é considerado um país endêmico, que, atualmente, vive um período de transição epidemiológica. Em 2006, recebemos um certificado de interrupção da transmissão intradomiciliar pelo Triatoma infestans, que foi responsável por aproximadamente 80% dos casos nesse contexto. No Brasil, são aproximadamente 2 milhões de infectados crônicos, segundo estimativas oficiais, mas a principal preocupação, atualmente, é a transmissão oral na região amazônica, grande fonte de casos agudos, que são de notificação obrigatória no país, e devem receber tratamento de forma imediata. Quase 90% dos novos casos são oriundos da Amazônia Legal.
 

9.    Sendo uma doença que afeta, principalmente, comunidades rurais, pessoas infectadas nas grandes metrópoles já vieram com a doença ou pode haver hospedeiros nas grandes cidades?

Pode haver hospedeiros nas grandes cidades, sim, mas com o êxodo rural a partir dos anos 70, muitos dos infectados vivem hoje em centros urbanos. Mesmo longe de áreas endêmicas, é importante lembrar que são possíveis transmissões por transfusão de sangue, congênitas e por transplantes de órgãos.
 

10.    Uma pessoa com a doença de Chagas pode receber um transplante de coração? E como seria sua vida pós-transplante? A doença infectaria seu novo coração?

Para pacientes que estão em estágios avançados da doença, com danos cardíacos graves e refratários ao tratamento, esse é o único recurso, a última esperança. O transplante aumenta em torno de 80% a expectativa de vida dessa pessoa, que pode viver com qualidade em torno de 10 anos mais. Já há estudos que mostram que a evolução do transplantado com Chagas é tão boa ou melhor do que os transplantes realizados por outras causas. Sim, é possível que o parasita infecte o novo órgão.
 

11.    É verdade que a doença pode ser transmitida por grãos contaminados, como feijão e lentilha, e que, por isso, temos que deixá-los imersos em vinagre por 15 minutos?

As possibilidades de transmissão da doença de Chagas são, como já falamos, por via vetorial (contato direto com as fezes do barbeiro, pois não se transmite pela picada) oral, congênita ou por transfusão de sangue. Para os grãos transmitirem a doença, seria preciso que estivessem contaminados com as fezes do barbeiro, contendo o parasita, e que fossem ingeridos crus. Além de o parasita precisar de um hospedeiro para sobreviver, o cozimento dos grãos citados, que não são comumente consumidos crus, eliminaria a possibilidade de transmissão.

 
12.    Qual seria a melhor estratégia a ser tomada pelas autoridades brasileiras para que a doença deixe de ser negligenciada?

O Brasil sempre desempenhou um papel de vanguarda em pesquisa e vem contribuindo muito, exportando essa expertise para outros países. Praticamente tudo o que se conhece sobre a doença de Chagas é resultante de pesquisas realizadas no ou lideradas pelo país.

 
13.    Como o Brasil pode ajudar a levar o tratamento da doença aos demais países da América Latina?

Há anos, o Brasil tem sido fundamental para o acesso ao tratamento para a doença de Chagas, uma vez que produz e distribui o benzonidazol para o mundo inteiro. O país tem de continuar, justamente, garantindo essa  produção de forma sustentável e acessível para as pessoas afetadas pela doença, que são, principalmente, populações de baixa renda e de regiões essencialmente rurais.
 

14.    Existem recursos para tratamento da doença nas áreas de atuação de MSF?

O acesso a diagnóstico e tratamento é extremamente limitado, contexto comum nas doenças negligenciadas. Na Bolívia, por exemplo, os serviços de saúde são pagos e a maioria das pessoas infectadas não tem recursos financeiros. A gente, como MSF, defende o diagnóstico e o tratamento gratuito na atenção primária como um direito humano de acesso à saúde.

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