Proposta histórica da suspensão de patentes tem de chegar prontamente a acordo

O acesso tem de ser garantido não só nas vacinas contra o coronavírus mas também em todos os instrumentos médicos da COVID-19, para todas as pessoas e em todos os lugares

© MSF

Com a retoma oficial das negociações sobre a suspensão dos direitos de propriedade intelectual nas tecnologias para a COVID-19, esta terça-feira, 22 de fevereiro, na Organização Mundial do Comércio, é crucial que seja firmado acordo sem mais demoras. A Médicos Sem Fronteiras (MSF) instou já, e repetidas vezes, a União Europeia (UE), Reino Unido e Suiça a adotarem rapidamente aquela proposta histórica, que eliminaria os monopólios das patentes e que conta atualmente com o apoio de mais de cem países. A organização médico-humanitária urge também que os Estados Unidos demonstrem uma liderança concreta para acelerar as negociações e ampliar o alcance do apoio expresso, indo além das vacinas e incluindo medicamentos e diagnósticos.

Face a quase seis milhões de vidas perdidas nos quase dois anos da pandemia de COVID-19, é para nós desolador continuarmos a testemunhar a chocante desigualdade que existe no acesso aos instrumentos médicos para a COVID-19 em muitos países de baixos e médios rendimentos em que trabalhamos, enquanto países ricos, que acumularam vacinas, estão agora a comprar grande parte da oferta de novos tratamentos”, sublinha a coordenadora de Políticas da Campanha de Acesso da MSF, Yuanqiong Hu. “A UE, o Reino Unido e a Suiça devem dar resposta à chamada dos países de baixos e médios rendimentos para endossarem esta isenção pioneira que pode promover o acesso, a produção local e a autosuficiência”, defende ainda.

A par da continuada desigualdade no acesso às vacinas, o acesso aos tratamentos para a COVID-19 permanece um desafio. O tratamento oral baricitinib, recomendado recentemente pela Organização Mundial da Saúde, está amplamente pantenteado em mais de 50 países e o preço praticado encontra-se para lá do alcance da maioria dos países de baixos e médios rendimentos.

Aquelas patentes só vão começar a expirar em 2029 e é provável que continuem a bloquear a produção e o fornecimento de genéricos nos países onde foram concedidas. Versões genéricas do baricitinib estão disponíveis por cerca de sete dólares (seis euros) por ciclo de tratamento de 14 dias na Índia e no Bangladesh, o que é substancialmente menos do que o preço proibitivo praticado pela Eli Lilly, titular da patente, de 1 109 dólares (978 euros) por ciclo de tratamento de 14 dias nos Estados Unidos.

O restritivo licenciamento da Eli Lilly às empresas de genéricos indianas impede o fornecimento de versões genéricas do medicamento a qualquer outro país além da Índia. O que acontece com o baricitinib demonstra a necessidade urgente de aprovar a suspensão das patentes, de forma a que os países não tenham de depender dos preços nem dos programas de abastecimento da Eli Lilly.

Barreiras e exclusão em acordos

Outro caso de desigualdade verifica-se na América Latina, onde a maioria dos países estão a enfrentar um limitado acesso a novos tratamentos para a COVID-19 devido, em parte, a barreiras nas patentes e a acordos restritivos de licenciamento sob o controlo de empresas farmacêuticas. Por exemplo, muitos países da América Latina foram excluídos do acordo assinado pela Pfizer e a organização de saúde pública Medicines Patent Pool (apoiada pelas Nações Unidas) sobre o tratamento que combina o nirmatrelvir e o ritonavir.

Isto significa que aqueles países não estão autorizados a comprar as versões genéricas desse medicamento oral que são produzidas ao abrigo do acordo. O nirmatrelvir/ritonavir tem também patentes pendentes na maior parte dos países da América Latina, as quais, se concedidas, não irão expirar antes de 2041 em muitos dos países. Daqui resulta que os países ficarão totalmente dependentes das decisões da Pfizer no que toca aos preços e aos programas de abastecimento da farmacêutica. A produção e o fornecimento locais do genérico nirmatrelvir/ritonavir nos países da América Latina têm de ser apoiados através da remoção das principais barreiras dos direitos de propriedade intelectual – o que pode ser alcançado com a adoção da suspensão de patentes.

O impacto da pandemia em muitos países da América Latina, incluindo o Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru, é devastador, com um elevado número de mortes e com os sistemas de saúde e os profissionais de saúde a debaterem-se para prestar assistência aos pacientes com COVID-19 em estado grave e crítico, tendo limitado oxigénio medicinal e limitadas unidades de cuidados intensivos”, descreve o coordenador da Campanha Acesso da MSF na América Latina, Felipe Carvalho. “Com os países da América Latina a continuarem a viver com o medo do surgimento de novas variantes que podem ameaçar a eficácia das ferramentas de prevenção que já existem, o acesso a medicamentos genéricos como o baricitinib e o nirmatrelvir/ritonavir a preços comportáveis será crucial para tratar as pessoas mais vulneráveis e quem contrai formas mais graves da doença. É mais do que chegada a hora para os países que se opõem à suspensão de patentes passarem a apoiar a isenção dos direitos de propriedade intelectual, de forma a facilitar a produção de genéricos a preços comportáveis e o fornecimento destas ferramentas médicas ao maior número possível de países”.

Renúncia das patentes tem de ir além das vacinas

Há cada vez mais provas que demonstram que a propriedade intelectual é um dos potenciais obstáculos para se garantir a produção e o fornecimento locais de vacinas e de tratamentos para a COVID-19 nos países. Por exemplo, a Moderna obteve patentes amplas na África do Sul sobre a tecnologia das vacinas ARNm, o que comporta riscos legais para outros fabricantes que pretendam colocar as suas vacinas no mercado.

Perante as evidentes desigualdades existentes no acesso a vacinas, medicamentos e testes da COVID-19, a MSF assinalou já com clareza que a renúncia nas patentes, firmada nos termos finais do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, tem de ir mais além das vacinas e incidir também sobre todas as tecnologias médicas essencias, incluindo tratamentos e testes.

Acresce que a duração da suspensão das patentes deve ser de pelo menos cinco anos, para permitir que o fabrico e fornecimento das ferramentas médicas da COVID-19, incluindo os materiais e componentes necessários, sejam preparados, ampliados, diversificados e sustentados.

“A nossa experiência a trabalhar em emergências de saúde pública e em alguns dos contextos mais difíceis no mundo mostra claramente que o diagnóstico e o tratamento são essenciais para a prevenção e para mitigar as doenças infecciosas e, ainda mais fundamentalmente, para salvar vidas”, explica a coordenadora de Políticas da Campanha de Acesso da MSF, Yuanqiong Hu. E conclui: “Uma isenção centrada unicamente nas vacinas, e ignorando ao mesmo tempo outros instrumentos médicos para a COVID-19, será um fracasso”.

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