Violência contra mulheres e crianças: uma luta diária na Papua Nova Guiné

A enfermeira de MSF Aoife Ní Mhurchú fala sobre os esforços da organização para atender vítimas de violência familiar e sexual

papua-nova-guine-msf161820-jodi_bieber

Na primeira vez em que conheci Mary, ela veio ao projeto de cirurgia de emergência da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tari, na Papua Nova Guiné (PNG), com ferimentos por todo o seu corpo, pois seu marido havia a agredido com um pedaço de pau. Na segunda vez em que a vi no hospital, ela estava com lacerações terríveis em sua mão; seu marido havia tentado “cortar” sua cabeça com um machete e ela havia levantado a mão para se proteger. Na terceira vez, ele havia dado um soco nela e quebrou seu nariz. E, na quarta vez, menos de um mês atrás, tivemos de suturar cortes na cabeça e nas costas dela depois dele tê-la agredido brutalmente com uma pedra.

Depois, no fim de semana passado, Mary aventurou-se a sair para ir ao mercado em Tari, desafiando as ordens estritas de seu marido para que fique em casa em todos os momentos. Quando ele a encontrou, atacou-a em público, quebrando um braço e uma perna. Agora, ela está de volta ao nosso hospital – pela quinta vez – em uma cadeira de rodas, recuperando-se lentamente.

Ao longo dos últimos oito meses, eu tenho trabalhado como enfermeira gestora do projeto de MSF em Tari – a capital remota de um distrito remoto nesse país insular pouco conhecido no norte da Austrália. Nós trabalhamos na ala cirúrgica do hospital provincial, por vezes ajudando a estabilizar pacientes com ferimentos graves de acidentes rodoviários, queimaduras e abcessos na pele. Mas quase um terço de nossos pacientes são pessoas que foram gravemente feridas por violência familiar e sexual. Quase todos são mulheres e crianças. Nós oferecemos cuidados médicos de primeira linha e cirurgia, quando necessário, no hospital e depois as levamos para receber tratamento especializado e cuidados de saúde mental no Centro de Apoio à Família de MSF logo ali ao lado.

MSF começou a atuar na PNG há nove anos porque havia uma necessidade enorme desses serviços específicos; frequentemente, eu ouvia as pessoas da comunidade dizendo que MSF havia salvado milhares de vidas estando aqui. Essa parte – ajudar a fazer uma diferença significativa na vida de nossos pacientes – tem sido extremamente gratificante. Mas eu não posso ignorar os problemas que nós, como uma organização, não podemos resolver.

Toda vez que a Mary vinha para receber tratamento, ela estava com muito medo de voltar para casa e ser agredida novamente. Mas ela estava com mais medo ainda do que poderia acontecer se ela deixasse seus três filhos sozinhos, ou sozinhos com seu marido, então sempre recusou meus convites para passar a noite internada.

Nessa última vez, no entanto, quando eu disse a ela que seus ferimentos estavam tão graves que ela não poderia ir para casa, ela teve de ficar internada, e eu pude ver que ela estava aliviada. Ela ainda estava preocupada com seus filhos, mas agora ela teve um tempo de refúgio forçado do seu algoz.

Eu queria que a Mary fosse um caso excepcional, um extremo do que vemos no hospital e no Centro de Apoio à Família. Mas ela não é. MSF tratou 27.993 sobreviventes de violência familiar e sexual desde 2009 e o número aumenta todo ano. Muitas de nossas pacientes vieram mais de uma vez – mulheres presas em relacionamentos abusivos, ou crianças que provavelmente foram abusadas por um membro da família ou por outra pessoa conhecida.

Isso não é uma exclusividade de PNG, claro. MSF trata pacientes de violência sexual em todo o mundo e, com exceção de zonas de conflito, onde o estupro é muito usado como arma de guerra ou por homens que se aproveitam de uma “quebra” na ordem, a maioria das pessoas que são estupradas já conhecia seu abusador. A diferença na PNG é que os sobreviventes de violência familiar ou sexual, inclusive crianças, frequentemente não tem lugar para onde ir que não seja de volta ao mesmo local inseguro onde nós e eles sabemos que é provável que sofram abusos novamente.

Quando MSF começou a manter esses programas na PNG, havia pouquíssimos programas de qualquer tipo que ofereciam assistência a vítimas de violência familiar e sexual. Hoje, após vários anos oferecendo cuidados médicos e psicológicos, treinando profissionais nacionais, compartilhando modelos de cuidados e trabalhando com o governo para priorizar as necessidades médica e de saúde mental de uma população que sofre níveis extremos de violência, tem havido algumas melhorias. Nesse mês, por exemplo, nós repassaremos o projeto em Tari para as autoridades de saúde provinciais (MSF continuará mantendo outros projetos no país, principalmente para tratar a tuberculose).

Eu senti diferentes emoções a respeito disso, para ser sincera. Enquanto tenho confiança na maravilhosa equipe nacional que MSF treinou e sei que há indivíduos comprometidos em manter esses programas de tratamento com seriedade, ainda há muito pouca proteção disponível para mulheres e crianças que sofrem padrões de abuso. Quando as fraturas de Mary cicatrizaram, não havia nenhum lugar em Tari, ou em grande parte da PNG, para ela e seus filhos buscarem segurança: nenhuma casa segura, nenhum abrigo, nenhum serviço familiar.

Embora seja difícil encontrar dados nacionais confiáveis, estima-se que as taxas de abuso familiar e sexual na PNG estejam entre as mais altas do mundo, a não ser em uma zona de conflito. Os dados de MSF mostram que a maioria das nossas pacientes é abusada por parceiros, cônjuges, ou membros familiares, e mais da metade é criança. Cerca de metade das nossas pacientes disseram que foram estupradas em casa: uma em cada 10 mulheres disseram que eram violentadas sexualmente de forma rotineira, enquanto duas em cada cinco crianças foram abusadas sexualmente mais de uma vez.

Em muitos dias, vemos lembretes dolorosos da disseminação da violência aqui: nossas próprias profissionais nacionais às vezes vêm trabalhar doloridas demais ou foram espancadas e não conseguem exercer suas funções. As próprias enfermeiras, conselheiras de saúde mental, cozinheiras e profissionais de limpeza que nos ajudam a tratar as mulheres e crianças por esses abusos vis são vítimas deles em suas casas.

Divórcios são possíveis, mas muito complicados. Aqui em Tari, quando uma mulher é casada, o homem deve pagar um “dote de casamento” para a família da noiva. O dote pode ser uma grande quantia – em alguns casos, a tribo inteira do homem contribui com dinheiro e pecuária – e a família da mulher, e sua tribo, devem concordar em devolver o “preço” da noiva antes que ela possa deixar o casamento. Os tribunais tradicionais dos vilarejos podem conceder a uma mulher um divórcio, mas nesta sociedade fortemente patriarcal, eles relutam em fazê-lo.

O governo deu passos na direção certa, mas seus esforços ainda são iniciais. Unidades de violência familiar e sexual recentemente estruturadas em algumas estações policiais estão definhando sem números adequados de profissionais treinados. A Lei de Proteção à Família, de 2003, que tornou a violência familiar um crime passível de punição – pela primeira vez – não está sendo aplicada adequadamente. E, após sete anos de análise, um ato em prol do bem-estar infantil foi aprovado no ano passado, obrigando os oficiais de proteção à criança a prevenir e responder ao abuso infantil e dando a policiais o poder de remover uma criança de uma situação em que ele ou ela esteja em risco para uma casa segura licenciada. Mas regulamentações para reforçar esse ato não foram aprovadas, e o progresso tem estado estagnado. Além disso, apenas quatro das 22 províncias do país têm orçamento para sua implementação.

Tenho orgulho do trabalho que MSF desenvolveu na PNG, mas estou preocupada que embora tenhamos ajudado a tornar cuidados médicos e de saúde mental urgentemente necessários disponíveis para esses sobreviventes, nós talvez estejamos meramente “consertando-os” para que depois voltem para mais sofrimento, mais abuso, mais violência sexual. Por quanto tempo eles permanecerão sobreviventes?

A única maneira de haver qualquer esperança de um futuro para Mary e todas as outras mulheres e crianças que vivem em um ciclo de abuso na PNG é o governo encontrar vontade política para acompanhar e agir para resolver essas questões. Também é preciso vontade política por parte dos países que doam para a PNG – Austrália sendo o maior deles e os EUA e a União Europeia sendo contribuintes substanciais – para pressionar o país a fazê-lo.

O Dia Internacional da Mulher é no dia 8 de março; é uma boa hora para trazer atenção às vidas de mulheres e crianças desse lugar tão afastado, e para lembrar nossos governos do poder que têm para ajudar a fazer uma diferença significativa.

Partilhar