Celebrando a existência

O psiquiatra Felipe Lins fala sobre o trabalho junto à comunidade yazidi em Sinuni, no Iraque

Sinuni, noroeste do Iraque. Manhã da segunda sexta-feira de dezembro. Ainda que a temperatura beirasse os 5°C, o sol trazia certo conforto às crianças que se agrupavam na rua, pedindo doces a quem lhes cruzava o caminho. Depois de três dias de jejum, era tempo de celebração da comunidade yazidi, em que ela se reúne e compartilha não só comida, como sorrisos e sonhos.

A noite de quinta-feira tinha sido um tanto conturbada. Curiosamente na véspera das comemorações, um acidente de carro levou ao hospital de Médicos Sem Fronteiras (MSF) alguns feridos, felizmente nenhum em estado grave. Depois de um incansável trabalho da equipe médica, os ânimos foram acalmados e tive uma tranquila noite de sono. Descansado, fui chamado por uma colega para avaliar uma senhora que se queixava de incessantes dores e que parecia estar um tanto confusa.

Com o auxílio da neta e de um tradutor, divagou sobre uma série de acontecimentos tristes e impactantes nos últimos anos. Durante a perseguição à população local, ela não teve outra alternativa a não ser se deslocar de Sinuni em direção a outra região do país. Contou sobre conflitos na família que se acirraram desde então, passando por problemas financeiros e as incuráveis dores pelo corpo. Considerando todas as dificuldades dado o cenário cultural e o idioma, conseguimos criar certa aliança terapêutica e agendamos novos atendimentos.

Enquanto aguardava a colega que havia solicitado minha ajuda e que naquele momento atendia uma emergência, conversei com um colega do próprio país sobre os momentos de tensão que aconteceram na região. Disse ele que antes da recente guerra e apesar das cicatrizes de um passado dolorido, os yazidis eram um povo feliz que festejava a vida diariamente. Aquele sábado de celebração seria apenas um dia qualquer, não fosse todo o sofrimento ao qual essa comunidade foi submetida nos últimos anos.

Ao deixar o hospital no fim da manhã, recebi um convite para almoçar na casa de um motorista da equipe. Lá, conversamos, fizemos uma excelente refeição e fomos felizes. No mesmo dia, Nadia Murad, yazidi vencedora do Nobel da Paz de 2018, estava na cidade. Nada que melhor represente uma população que, apesar dos momentos de desespero, perdas e incertezas, encontra tanta potência e anseios de seguir caminhando e celebrando a existência.
 

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