Em tempos de pandemia, todos precisamos de cuidados

Por Karla Magalhães, psicóloga e supervisora de saúde mental da resposta de MSF à COVID-19 em São Paulo

Em tempos de pandemia, todos precisamos de cuidados

Em novembro do ano passado, assumi a supervisão da equipe de atendimento especializado em saúde mental do Projeto Acolher, na zona leste da cidade de São Paulo. Era o meu primeiro projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF), por isso atribuí muita importância. Durante quatro meses, atuei na Unidade de Cuidados Paliativos, em um hospital público, ao lado de uma equipe interdisciplinar. O objetivo era melhorar a qualidade de vida de pacientes e de seus familiares diante de uma doença ameaçadora para a vida, buscando prevenir ou mitigar o sofrimento com tratamentos para dor e para outros sintomas, sejam eles físicos, psicológicos, sociais ou espirituais.

O projeto tinha caráter de emergência e buscava auxiliar as equipes de saúde local, que apresentavam sinais de sobrecarga física e emocional, provocados pelo grande volume de trabalho relacionado aos atendimentos a pacientes com o novo coronavírus. Só para se ter uma ideia, o hospital funcionava com uma taxa de quase 100% de ocupação de leitos durante toda a pandemia.

Ao chegarmos, recebemos 10 leitos no setor de clínica médica para pessoas diagnosticadas com COVID-19, que também eram portadoras de enfermidades prévias e em estado avançado. Além disso, essas pessoas ficaram doentes em meio a uma pandemia causada por um vírus extremamente contagioso, que as obrigava a passar pelo processo de internação desacompanhadas, desamparadas e afastadas de suas redes de afeto.

Para colocar em prática os princípios do cuidado paliativo, a equipe de saúde mental comprometeu-se em oferecer suporte emocional aos pacientes internados, aos seus familiares e até às equipes de saúde (profissionais da unidade hospitalar e os atuantes no Projeto Acolher). Cada estratégia escolhida pelo time teve como pano de fundo o resgate da subjetividade humana, mas sem esquecer as normas de biossegurança.

Dentre as principais atividades realizadas, conectamos pacientes e familiares por tablets e celulares, desenvolvemos atividades lúdicas com momentos para leitura, para ouvir música e assistir a filmes e vídeos de entretenimento. Também criamos um mural afetivo, com fotos alegres de comemorações em datas festivas (aniversários, Natal e Ano Novo) e de celebração pela alta hospitalar. Na sala interdisciplinar, outro mural foi montado com imagens dos profissionais, tornando o ambiente mais leve, harmonioso, colorido e acolhedor.

A minha motivação de estreia em MSF começou com as expectativas que criei a partir de pesquisas sobre a organização, que atuava em grandes tragédias ambientais, guerras e crises sanitárias em lugares distantes e vulneráveis. De repente, o combate era no meu país, que carecia desta proteção que MSF oferecia, e eu poderia contribuir com a minha experiência. Com o passar dos dias, a minha alegria e encantamento com a qualidade do trabalho oferecido só cresciam, e eu me surpreendia com a possibilidade de poder promover saúde mental em meio a um contexto tão novo e desafiador.

Muitos foram aqueles que expressaram seus sentimentos de segurança, após receberem os cuidados. Muitas foram as famílias que, após uma chamada de vídeo com seus entes queridos, apresentavam semblante de alívio de suas angústias. Da mesma forma, muitos foram os momentos em que pacientes, famílias e equipes sorriram, apesar de todas as dificuldades enfrentadas. Eu consegui perceber que, como afirmou Cicely Saunders, uma das pioneiras da medicina paliativa, “o sofrimento humano só é intolerável quando ninguém cuida”.  E, em nossa unidade, estávamos imersos em uma rede de cuidados.

No entanto, também para a minha surpresa, quando eu estava iniciando o terceiro mês de projeto, aquela doença que até então parecia se aproximar apenas dos meus pacientes, também me assombrou. O vírus que estava lá, passou para o lado de cá ao contaminar dois profissionais da minha equipe, que tiveram de ser afastados até que se reabilitassem. Com o time desfalcado, angustiada e com o risco de ser afetada pelo vírus invisível (e onipresente), tudo mudou. Fomos inundados pelo sentimento de insegurança e pela tensão de estarmos 24 horas sob total vigilância, dado que cada falha ou descuido poderia resultar em contaminação.

Nesta mesma época, em janeiro de 2021, eu recebi a notícia de que meu pai também havia sido contaminado, e que se encontrava internado em estado gravíssimo em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em minha cidade natal. E eu, que estava longe de meus familiares e à frente de uma equipe com parte dela adoecida, fiquei preocupada comigo, com meus parentes e com todos do time. Este mês foi o mais desafiador da minha vida profissional, pois me vi tendo que equilibrar “vários pratos ao mesmo tempo”, oferecendo apoio a todos, inclusive, para a minha família à distância.

Enquanto eu atendia uma pessoa do Projeto Acolher, eu me lembrava do meu pai que, como as pessoas sob os meus cuidados, estava sozinho em um leito de hospital. Enquanto eu transmitia força aos membros da minha equipe que estavam adoecidos, eu pensava nos outros que também corriam risco de adoecerem. Enquanto eu lidava com tudo isso, eu percebia que, diferentemente dos contextos de outras missões humanitárias, a pandemia não nos deixava fora dela. Cuidávamos de pessoas que adoeciam em função de uma enfermidade, que também nos atingia direta ou indiretamente. Logo, fui observando e experimentando o mesmo sofrimento de todos aqueles que cuidávamos. O sentimento é o de que estávamos todos no mesmo barco ou em uma mesma circunstância. Estávamos em posições de igualdade, pacientes e profissionais de saúde, lutando contra o avanço desenfreado de um vírus mortal. Nossas apreensões nos colocavam em uma relação horizontalizada, democrática e humana.

No entanto, diferentemente do que possa parecer, foi exatamente a partir deste momento, em que me vi tão frágil quanto o outro que eu cuidava, que percebi que o profissional de saúde também pode e deve ser acolhido. Influenciada por essa reflexão, consegui me despir de meu jaleco e recorri à equipe de MSF, que já havia recebido a notícia sobre o agravamento do quadro do meu pai, pessoa que admiro e de quem herdei o nome. Na ocasião, consegui visitá-lo e pude oferecer-lhe tudo aquilo que eu fazia em meu contexto de trabalho, mas, dessa vez, ocupando o lugar de filha. Os dias em que me afastei do trabalho permitiram um tempo de autocuidado e de apoio aos meus familiares.  

Minha primeira experiência com MSF acabou revelando que a crise de saúde a ser enfrentada não pertencia apenas a uma região específica ou a um grupo de pacientes. Nós, os profissionais de saúde, também passamos a ser aqueles que eram cuidados e que corríamos riscos iguais aos de todos aqueles que prestávamos assistência.

Em tempo: meu pai saiu da UTI e está se recuperando em casa graças aos cuidados que ele também recebeu. E eu, ao ter a minha dor emocional respeitada e amparada pela equipe de MSF, pude compreender que o segredo para concluirmos esse projeto de maneira exitosa, mesmo com todos os desafios, foi que cuidamos e que também fomos cuidados.

 

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