Líbia: um país de muitos migrantes sem esperança

A gestora de laboratório Inês Rodrigues faz uma reflexão sobre o projeto em que trabalhou em Misrata

Líbia: um país de muitos migrantes sem esperança

Cheguei de missão da Líbia em Maio, de um projeto localizado na cidade de Misrata.

A Líbia é um país do Norte de África. Desde a guerra civil de 2011, em que foi derrotado o Governo de Muammar Khadafi, até hoje a Líbia é um país de constante instabilidade politica e onde a guerra se continua a fazer sentir na fragilidade e inativação dos serviços de saúde, com consequências óbvias para as populações locais.

Apesar da instabilidade contínua, pela sua localização geográfica e histórico contexto económico, a Líbia continua a ser um destino para trabalhadores migrantes de toda a África e um país de trânsito para migrantes, requerentes de asilo e refugiados que tentam cruzar o mar Mediterrâneo e chegar à Europa.

A interceção de migrantes na via terreste ou marítima pelo Estado da Líbia tem sido apoiada pelas políticas europeias, de forma a diminuir os números dos fluxos migratórios que chegam à Europa. Esta pressão é ainda acentuada pela sobrelotação dos campos de migrantes, requerentes de asilo e refugiados na Europa e as sucessivas faltas de resposta para a sua resolução.

No vértice oposto aos campos na Europa encontram-se os campos de detenção na Líbia, que detém as pessoas intercetadas e onde as condições são desumanas, de sobrelotação e sem acesso, muitas vezes, a bens essenciais como água e alimentação. Bebés, crianças e adolescentes. Homens, mulheres e famílias separadas e enclausuradas em celas por tempo indefinido, muitas delas sem verem a luz do sol há meses. Muitas delas que apenas fugiram da guerra nos seus países.

Somando-se a todas estas condições nos centros de detenção, estas pessoas sujeitam-se ainda à insegurança na Líbia, aos abusos físicos e sexuais que sofrem durante o percurso até chegarem aos centros e, frequentemente, dentro deles, e ainda ao tráfico de migrantes com alvo especifico nalgumas nacionalidades.

Nos centros de detenção líbios permanecem até que lhes seja aprovado o requerimento de asilo ou concedido o estatuto de refugiado. É um processo burocrático e moroso das agências da União Europeia, que demoram anos ou simplesmente não funcionam. Nestes centros, a espera interminável neste processo e as condições a que as pessoas estão sujeitas, fazem com que a esperança já não exista.

Além do apoio médico nos locais de desembarque, quando os barcos retornam a território líbio com migrantes que navegaram por horas ou dias em busca de alcançarem terras seguras na Europa, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) apoia também os campos de detenção com consultas médicas e de saúde mental. Sendo a única ONG internacional presente em muitos dos campos de detenção onde atua, garante assim acesso à saúde básica bem como ao seguimento médico de muitos migrantes.

Muitos dos migrantes na Líbia são originários de países com alta prevalência de tuberculose (TB). A falta de acesso a serviços de saúde associada às precárias condições de vida, tanto nos centros de detenção como nas comunidades na Líbia, são críticos na disseminação de TB e no potencial desenvolvimento de resistência a antibióticos.

Em 2020, a MSF inaugurou uma unidade de tuberculose com capacidade para receber desde pacientes com simples tuberculoses até tuberculoses multiresistentes a medicamentos (TB-MDR), sendo a única unidade médica capaz de receber TB-MDR até então.

Além das consultas nos centros de detenção, um acordo estabelecido com o Centro Nacional de Controlo de Doenças (NCDC) em Misrata permitiu iniciar uma parceria entre a MSF e o Ministério da Saúde líbio, com consultas diárias para tuberculose no NCDC com o objetivo de identificar, tratar e fazer o seguimento de TB de cidadãos líbios e de outras nacionalidades e, caso necessário, fazer o encaminhamento para a unidade de TB da MSF. Este apoio abrange migrantes e também a população líbia local.

Nesta missão na Líbia, fui como responsável de laboratório. O meu papel centrou-se na montagem de um laboratório de TB no NCDC. Já ali existia um laboratório, mas encontrava-se sem atividade desde 2011, altura da guerra civil na Líbia. A implantação de técnicas de TB para a deteção e monotorização do tratamento, a formação de técnicos de laboratório locais para as técnicas de TB, bem como para as medidas de prevenção e controlo de infeção, tiveram como objetivo tornar este serviço funcional e autónomo e potencializar o programa nacional de apoio à luta contra a tuberculose.

Apesar de muitos serviços de saúde e laboratoriais estarem fragilizados e sem funcionamento desde a guerra de 2011, este laboratório está agora apto para providenciar serviços laboratoriais às consultas feitas pela MSF nos campos de detenção, às consultas para a população em geral no NCDC ou a hospitais que se encontrem na periferia.

Durante a minha missão na Líbia e, após a implantação dos serviços de laboratório, a MSF fez ainda um rastreio maciço de tuberculose às pessoas detidas nos campos de detenção onde trabalhamos e deu suporte laboratorial num outro rastreio de TB feito pelo NCDC de Trípoli em prisões de Misrata.

Com um sistema de saúde fragilizado e uma população migrante vulnerável, sem acesso a serviços de saúde, a Líbia fez parte dos 70 países onde a MSF providenciou apoio para o combate à COVID-19: demos formações de controlo de infeção e do uso correto de equipamento individual de proteção, tanto em hospitais como junto de equipas de saúde do Ministério da Saúde, distribuímos material para controlo de infeção nos centros de detenção, fizemos atividades de sensibilização para a higienização, entre muitas outras atividades.

Além do papel médico da MSF ser notoriamente reconhecido neste projeto, este é um exemplo de ação da organização humanitária que surge também da necessidade de mostrar as condições desumanas em que muitos migrantes vivem, assim como a falta de acesso a serviços básicos de saúde e de dignidade. Esta é uma população vulnerável que está longe de ver a sua situação resolvida. Este é um projeto que apela à necessidade urgente de politicas que garantam a humanidade e a proteção de quem percorre caminhos inseguros e que sonha com um futuro melhor ou, em muitos casos, apenas sem guerra.

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