Moçambique: uma mistura de emoções

Profissional de laboratório brasileira descreve sua primeira experiência com MSF em um projeto de HIV/Aids

Moçambique: uma mistura de emoções

03/05/2016 – Médicos Sem Fronteiras (MSF) sempre me tocou o coração, mas eu tinha a impressão de ser apenas médicos que poderiam fazer parte da organização. Por isso, acompanhava de longe, sem muita esperança de fazer parte deste grupo. Um dia, assistindo a alguns vídeos no Youtube, vi um projeto de calazar que tinha uma profissional de laboratório trabalhando em um laboratório móvel. Imediatamente, fiz uma busca no site de MSF-Brasil e vi que havia oportunidades para profissionais de laboratório.

Em agosto de 2014, ainda durante o surto de Ebola na África Ocidental, enviei meu currículo para MSF-Brasil. Alguns meses depois, fui chamada para uma entrevista e fiz o processo seletivo, e, então, tinha início a ansiosa espera para a primeira participação em projeto. Eu sonhava em trabalhar em campo para combater o surto.

Em outubro de 2015, recebi o chamado: atuaria como gestora de laboratório no projeto de HIV/Aids e TB (tuberculose) de MSF em Maputo, capital de Moçambique, por 12 meses. Em 45 dias, pedi demissão do meu antigo emprego, preparei os documentos, a família e os amigos, fechei minha casa e entrei no avião no dia 20 de dezembro de 2015 rumo ao projeto com MSF.

Primeira vez na África, primeira vez em MSF, primeiro Natal longe da família. Demorei a me adaptar, senti bastante solidão, passei mal com profilaxia de malária, o lixo das ruas, o sofrimento da população… Enfim, não foi fácil. A equipe me recebeu muito bem e me senti acolhida. O trabalho começou, e as horas em que eu passava no projeto eram mais fáceis, pois estava ocupada demais para lembrar que estava longe, que a internet era ruim – o que dificultava a comunicação com a família e os amigos –, além da diferença de fuso horário.

O projeto, em relação à parte laboratorial, é focado nos pacientes em tratamento de segunda e de terceira linha para HIV e infecções oportunistas, como sarcoma de Kaposi, Criptococcus, além de pacientes em tratamento para tuberculose, tuberculose multirresistente (TB-MDR) e tuberculose ultrarresistente (TB-XDR). Nosso trabalho é garantir os testes laboratoriais para que a equipe clínica tenha melhores dados para suas decisões e acompanhamento destes pacientes. A equipe laboratorial é formada por cinco pessoas: eu e mais quatro profissionais nacionais. Além da rotina laboratorial, prestamos suporte para as pesquisas operacionais. Somado ao trabalho no centro de referência, também apoiamos alguns centros de saúde da cidade de Maputo. Moçambique tem um Ministério da Saúde bastante presente, e devemos trabalhar de acordo com as regras já estabelecidas e atuar como parceiros.

Apesar de trabalhar em laboratório desde 1997, nunca tinha trabalhado com tuberculose. Por isso, fui fazer um treinamento no Instituto de Medicina Tropical na Antuérpia, na Bélgica. Passei duas semanas intensas imersa nas culturas e nas leituras de lâminas. Neste período, senti falta de Maputo. Do trabalho, das pessoas, do calor, do caos… Em uma conversa com a minha gestora de carreira de MSF-Brasil, ela me disse: “Se você está sentindo falta de tudo isso, é por que está adaptada”. Este foi o marco pra mim, pois realmente eu queria voltar, e fiquei feliz ao aterrissar mais uma vez na África.

A solidão faz parte do dia a dia. Todos cuidam uns dos outros, mas internamente você está sempre só. Eu aprendo mais do que ensino todos os dias. Atendemos muitas crianças e eu sou apaixonada por elas. É muita coragem e bravura em tanta inocência. Um dia, entrei no laboratório e havia um menininho sentado na cadeira de coleta. Ele logo me olhou e disse: “Doutora, vim aqui tirar sangue”. Esticou o bracinho, apertou os olhos como quem já esperava a picada da agulha, e me disse que não iria chorar. Realmente, ele não chorou; eu chorei depois. Entrei na sala da minha coordenadora e passei uns minutos me recompondo para conseguir voltar ao trabalho. Ver aquele menino portador de TB-XDR, que faz tratamento com injeções diárias, e ainda com brilho nos olhos, me causou muita emoção. E, até hoje, quando ele vem ao centro de referência, vou lá ver como ele está se saindo.

Emoções são o que mais enfrento todos os dias. Os sentimentos ficam bastante exacerbados e a entrega é intensa. As relações pessoais acabam se dando com quem trabalhamos. A conexão com as pessoas parece ser mais rápida, ninguém é indiferente ao sentimento do outro e sempre haverá alguém com quem a afinidade salta e você se apega, mas um dia o projeto acaba e chega o fim. O que também é estranho; é do dia pra noite. A parceria de trabalho, de amizade, de apoio de todos os dias sofre um corte. Eu já me despedi de duas amigas que foram extremamente importantes nesses primeiros meses e eu sinto falta delas. Mas chegam novas pessoas, o ciclo se reinicia e o grupo se renova.

Um dia desses, conversando com meu avô de 95 anos ao telefone, ele me disse que eu não deveria tê-lo deixado no Brasil e ter vindo pra cá, pois ele sente muito a minha falta. Me disse: “Filhinha, você deveria ter ficado aqui conosco, pois uma árvore só não faz floresta”. E eu disse a ele que somos muitas árvores juntas e, sim, formamos uma floresta.

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