MSF conta com a dedicação de brasileiros na Ucrânia

“Participar da realização de um trabalho como este tem sido uma alegria; ver a necessidade de nossos pacientes e poder responder exatamente da forma como eles precisam é muito bom”, diz o enfermeiro Denílson Borges

Apos uma longa viagem, com mais de 11 horas de duração e pelo menos 3 conexões, de longe já começo a avistar pela pequena janela do avião alguns verdes campos de um país marcado pela grande capacidade agricola e mineral, ao mesmo tempo em que sofre, há mais de um ano, com uma guerra que, como todas as outras, não tem piedade nem mede consequências para os inocentes envolvidos. Parece que o terreno foi todo desenhado com uma engenharia ultramoderna. A vista é linda de se ver. Aos poucos esses campos verdes comecam a dar lugar a pontos dourados da cúpula dos milhares de templos ortodoxos espalhados por todo o país. Ao aterrizar e entrar no aeroporto, começo a ver a diferenca cultural e pessoas com olhos castanhos e azuis cruzando os corredores de um lado para outro. Já estou na Ucrânia, em meio a uma população considerada relativamente desenvolvida. Já dá pra sentir o quão especial será esta oportunidade em termos de serviço humanitário, de encontro com mais uma população que sofre e precisa de cuidados.

Desde que se iniciou a guerra, a população das três regiões mais afetadas pelos conflitos sofrem muito devido a falta de centros de saúde com presença de profissionais como enfermeiros, psicólogos  e médicos. O grande sofrimento populacional envolve muitos fatores, mas a oferta de cuidado médico especializado e suprimento de medicamentos só se faz possível na região por meio de organizações humanitárias, como Médicos Sem Fronteiras, que, com uma equipe multidisciplinar na região, ajuda essa população.

Aqui, o que afeta as pessoas não são as epidemias e grandes surtos de malária ou cólera; a maioria dos nossos pacientes são portadores de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão arterial, além de complicações decorrentes dessas duas enfermidades, como derrame cerebral e suas sequelas e outras complicações. Cerca de 90% dos nossos pacientes são idosos. Na maioria das vezes, temos acessado vilarejos com uma média de 200 habitantes e praticamente todos são idosos, muitos deles desamparados e oprimidos por uma guerra que atormenta e faz sentir na pele a insegurança com relação à vida.

Também temos um grande índice de pessoas com desordens mentais, como estresse pós-traumático e síndrome do pânico, afinal, não é fácil viver em um ambiente ao som de explosões e tiros, além de mísseis visíveis e facilmente audíveis. Para tratá-las, dois psicólogos atuam na nossa equipe. É comum todos os dias termos um grande número de pacientes, na maioria adultos, precisando do cuidado desses profissionais. Felizmente, contamos com uma equipe altamente gabaritada e com uma disposição verdadeiramente humanitária – a maior parte dos profissionais são nacionais, contratados por MSF. A motivação deles é muito pertinente, pois estão fazendo conosco este trabalho humanitário ajudando sua própria gente.

Participar da realização de um trabalho como este tem sido uma alegria; ver a necessidade de nossos pacientes e poder responder exatamente da forma como eles precisam é muito bom, faz-nos sentir, como equipe, uma alegria imensurável, pois não há nada melhor do que responder com o alívio possível àquele sofrimento exato. Muitas  vezes, enquanto estamos trabalhando com nossa clínica movel, ouvimos, a cerca de 1 km de onde estamos, o barulho das bombas e mísseis. Muitas vezes, cruzamos essas zonas olhando para o céu na expectativa de que algum elemento de guerra possa passar voando sobre nós. Atuamos em horários marcados, nos momentos em que recebemos das autoridades a permissão formal para entrar na região. A partir daí, estabelece-se um cessar-fogo com duração de quatro horas, período durante o qual entramos com todo o nosso suprimento e equipes.

Realizamos nosso trabalho com consultas médicas e psicológicas, além da provisão gratuita de todos os medicamentos de que os pacientes necessitam. Organizamos meticulosamente nossa equipe, cada uma com seus suprimentos necessários, e, após atuarmos com nossa clínica, retornamos para a cidade onde temos nossa base, antes que o cessar-fogo termine. É bom saber que em meio a esse conflito temos uma logística que tem funcionado, assim, podemos entrar e sair com segurança. Porém, por outro lado, é triste sabermos que milhares não têm como sair desse conflito por diversos fatores, entre eles a falta de recursos.

Uma palavra bem utilizada, um conselho e suporte psicológico bem ofertados, um medicamento bem prescrito e bem administrado, um exame físico benfeito, um dado epidemiológico bem coletado têm sido algumas das grandes atividades de nossa equipe aqui. Todo esse trabalho planejado e ofertado tem em vista nossos beneficiários, proporcionam resultados imensuráveis, pois nada é mais humano do que uma

resposta adequada ao necessitado, nada é mais justo do que a ajuda certa e na hora certa para o afligido e humilhado; nada é mais digno do que devolver de alguma forma a dignidade perdida pela injustiça da vida e pela arrogância humana, que não tem fim. Assim trabalhamos aqui. Centramos nossas capacidades, recursos, energia e disposição não nos riscos que corremos, mas no que chora sem ser consolado, no que sofre agressão que não deixa hematomas ou feridas na pele, no que se queixa e chora junto ao seu travesseiro pelo filho que nasceu ao som de bombas e mísseis, no idoso que com seus pés cansados ainda se esforça para viver um pouco mais, e assim ser feliz.

Abrir mão de conforto e da segurança, da própria língua e cultura, para fazer um trabalho como este com certeza não é fácil, mas também o que ganhamos de aprendizado de vida, o gozo e a alegria em servir proporciona um sentimento de humanidade que se perdeu em meio ao capitalismo. Um sentimento que deu lugar à posse. Estar aqui, participando pela terceira vez de um projeto de Médicos Sem Fronteiras, é mais uma vez um encontro com minha humanidade autêntica e original. Isso me faz lembrar todos os dias das lições que não podem ser esquecidas, e eu me torno melhor com essa dinamica de benefício ao próximo. Me parece que cada gesto de entrega e bondade ensina mais sobre meus limites, mas me ensina também que sempre posso fazer alguma coisa boa, em algum lugar, para pessoas que com certeza tem muitas coisas boas a oferecer.

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