“A certa altura deixei de perguntar aos pacientes o paradeiro dos familiares”

Ulrich Crépin Namfeibona é coordenador-geral da equipa de emergências enviada pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) para responder às cheias devastadoras que atingiram o Leste da República Democrática do Congo na noite de 4 de maio e causaram a morte de 400 pessoas

Cheias na RDC
© MSF/Moses Sawasawa, 2023

“Na manhã de sexta-feira, 5 de maio, a nossa equipa de emergência foi informada pelas autoridades que, durante a noite, cheias e deslizamentos de terras tinham atingido Nyamukubi e Bushushu, duas vilas com um total de 14  000 habitantes em Kalehe, na província de Kivu do Sul, no Leste da República Democrática do Congo (RDC). Após contactar líderes comunitários e trabalhadores de saúde locais, percebemos que estávamos a atravessar uma grande catástrofe.

Mobilizámo-nos rapidamente para partir no dia seguinte. Viajei com uma equipa de mota para Nyamukubi a partir de Minova, onde estamos a assistir pessoas deslocadas que fogem do conflito; a outra equipa partiu de carro em direção a Bushushu a partir da base da MSF em Bukavu, a capital da província, levando medicamentos e provisões médicas para tratar pessoas feridas, assim como sacos para cadáveres.

Foi chocante chegar à vila habitualmente animada, onde costumávamos parar, e perceber que praticamente desaparecera.”

Mais da metade da localidade tinha sido levada: as casas, o mercado, os campos, o castelo, o sistema de água…Tudo era destroços e destruição.

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Naquela quinta, Nyamukubi tinha recebido o mercado semanal da região, que atraía visitantes de tão longe quanto Bukavu e Goma, então a área tinha cerca do dobro da população que é costume.

O desastre apanhou todas as pessoas de surpresa.”

Depois do primeiro deslocamento de terras, muitas pessoas fugiram, mas o rio transbordou, não deixando forma de escapar, enquanto a chuva forte continuava.  

Ao chegar ao centro de saúde em Nyamukubi foi como se as pessoas que restavam nas aldeias estivessem todas lá. As salas estavam cheias de pessoas feridas – estavam em todo o lado, nas camas, no chão – e estavam lá muitos familiares também. Houve pânico, pessoas a chorar e a gritar e as pessoas da equipa de saúde local pareciam exaustas.

A primeira coisa que fizemos foi ajudar a gerir a multidão e a triagem de pacientes.” 

Identificámos quais eram os pacientes mais críticos, que precisavam de cuidados especializados para sobreviver e quem estava com ferimentos moderados, para que pudessem ser tratados no local. Dois pacientes com traumatismos cranianos morreram logo após a nossa chegada.

Entretanto, na cidade de Kalehe, a segunda equipa encontrou uma situação semelhante, com dezenas de pacientes feridos que já tinham sido transferidos de Bushushu.

Tivemos de pensar rápido para ultrapassar um grande desafio: a estrada principal que cruza a área afetada pelo desastre ficou cortada devido ao deslizamento de terras e erosão por água tornando-se intransitável. Graças à comunidade, identificámos o proprietário de um barco comercial que fazia viagens diárias para Goma, através do Lago de Kivu. Alugámos o barco e depois fizemos algumas verificações e adaptações, movendo alguns lugares para conseguirmos instalar os pacientes de forma adequada.

A estrada está cortada e muitas das casas foram levadas pelas cheias em Nyamukubi, na República Democrática do Congo. © MSF/Moses Sawasawa

Nesse dia, usámos o barco para transferir 16 pessoas gravemente feridas de Nyamukubi para Kalehe. Tinham fraturas abertas e fechadas, nos membros, no corpo, tinham politraumatismos… Como só tínhamos combustível para uma viagem curta, levámo-las primeiro ao porto de Kalehe, e depois fizemos uma série de viagens numa estrada não pavimentada danificada para as levar ao hospital da cidade, onde se juntaram a 59 outros pacientes feridos.

No dia seguinte, 7 de maio, transferimos 28 desses pacientes para o hospital provincial de Bukavu numa viagem de barco de quatro horas. Entre eles havia algumas crianças e grávidas. Todas as pessoas acompanhadas por alguém da família.  

Durante os dias seguintes, fizemos mais transferências de pacientes gravemente feridos das áreas afetadas para Bukavu, em cooperação com as autoridades de saúde e outras organizações, agora usando barcos mais sofisticados. Transferimos um total de 41 pacientes para o hospital provincial em Bukavu. 

Foi uma operação extremamente desafiante, com decisões difíceis para tomar, dado que nem todos os familiares puderam ser transportados de barco.

Houve um momento em que parei de perguntar aos pacientes acerca do paradeiro dos familiares; as respostas deles muitas vezes confirmavam a perda de pessoas queridas.” 

De regresso às localidades atingidas pelas cheias, alguns pacientes com ferimentos ligeiros prontos para serem dispensados permaneceram nos centros de saúde, que se tornaram num refúgio para as pessoas deslocadas.

O que é que se pode fazer quando não se tem mais uma casa?”

Outras pessoas estão abrigadas em igrejas, escolas e outros edifícios administrativos que ainda estão de pé.

Atualmente, as pessoas cujas casas não foram destruídas estão a hospedar até cinco famílias. Algumas pessoas deslocaram-se para as colinas e montaram abrigos improvisados, enquanto muitas outras pessoas foram para vilas perto.

Pessoas tentam salvar parte da mobília das casas em Nyamukubi, na República Democrática do Congo. © MSF/Moses Sawasawa

A 11 de maio, várias organizações não-governamentais e agências das Nações Unidas tinham chegado à cidade de Kalehe e estiveram a providenciar ajuda ou a preparar-se para o fazer. As necessidades humanitárias mais urgentes são abrigos, água potável, artigos essenciais para assistência, proteção para muitas crianças que perderam os pais e apoio psicossocial para lidar com esta tragédia. 

Nós, na MSF, permanecemos vigilantes em relação à condição das pessoas feridas e outras necessidades médicas que possam surgir.”

Grupo de pessoas procura entre os destroços por corpos levados pelas cheias em Bushuhsu, Kalehe, na RDC. © MSF/Moses Sawasawa

Até ao momento, foram confirmadas mais de 400 mortes, mas as autoridades locais estimam que vários milhares de pessoas estejam desaparecidas, particularmente em Nyamukubi. A esperança de encontrar as pessoas com vida desvaneceu-se e a procura por mortos, levada a cabo pela Cruz Vermelha do Congo e a comunidade local, continua inabalável, dificultada pela falta de meios logísticos para fazer face a uma catástrofe desta dimensão, que por muito tempo assombrará a memória da população.”

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