“Ebola é sobre seres humanos e confiança”

A médica Hilde de Clerck fala sobre sua experiência no atual surto de Ebola na República Democrática do Congo

“Ebola é sobre seres humanos e confiança”

Em 1º de agosto de 2018, uma epidemia de Ebola foi declarada em Kivu do Norte, no nordeste da República Democrática do Congo (RDC). Trata-se do 10º surto de Ebola no país, o segundo só este ano. MSF rapidamente iniciou seu trabalho, dentro do plano de resposta do Ministério da Saúde congolês. A epidemia ainda não está sob controle e novos casos apareceram a mais de cem quilômetros de distância do epicentro. Enquanto o conflito em curso na região pode representar um desafio a mais para a atuação de MSF, a resposta ao surto foi imediata e algumas novidades na abordagem médica podem ajudar a tornar o trabalho mais eficaz.

Hilde De Clerck é uma das médicas de Ebola mais experientes de MSF e vem gerenciado surtos de Ebola e vírus similares há mais de 10 anos. Hilde acaba de retornar de Kivu do Norte, no leste da República Democrática do Congo (RDC), onde o último surto de Ebola se mostrou difícil de controlar. Novos medicamentos que podem ajudar a curar aqueles que contraíram o vírus estão disponíveis, mas oferecer e administrar esses medicamentos, diz Hilde, não é tão fácil quanto parece.
 
“Quando oferecemos um dos medicamentos aos pacientes, falamos sobre os possíveis benefícios, mas esclarecemos que não podemos garantir que o medicamento funcionará; nós explicamos os efeitos colaterais, mas também os riscos ligados ao que ainda não sabemos sobre o produto. Sempre nos certificamos de que o paciente, ou um membro da família que o esteja representando, tenha entendido bem e dê seu consentimento. Às vezes, a força e a determinação dos pacientes me surpreendem. Eu tive que explicar isso para uma mulher que estava muito doente e cansada, mas ela abriu os olhos, sentou-se com orgulho e assinou o formulário de consentimento. Todo o processo foi franco e acredito fortemente que ela tomou uma decisão consciente.

É muito bom ter cinco moléculas que parecem promissoras, mas também temos que ser realistas. Não há evidências científicas de que qualquer um desses medicamentos funcione para pessoas com Ebola. Ainda assim, é um bom avanço. Podemos oferecer aos pacientes de Ebola acesso a medicamentos que podem potencialmente salvar vidas enquanto se preparam para uma implementação de testes clínicos que, espera-se, determinará a eficácia e a segurança. É assim que avançamos. Mas, às vezes, tenho a sensação de que a mídia e até mesmo alguns profissionais de saúde acham que agora temos um tratamento que funciona. É muito cedo para dizer isso.
 
Continua a ser um desafio dar estes medicamentos aos pacientes. Essa é uma das minhas principais preocupações. Tecnicamente, não é tão difícil, mas você precisa ter a capacidade e a estrutura adequadas. Como são produtos ainda não registrados, cada medicamento deve ser administrado e monitorado seguindo um protocolo rigoroso. Isto não é tão simples dentro de um centro de tratamento de Ebola. Você tem que se mover com cuidado e devagar por causa das roupas de proteção. Você não pode ver tantos pacientes durante seu tempo na enfermaria. Você tem que monitorar os parâmetros médicos de seus pacientes, como temperatura, certificar-se de que eles estão sendo alimentados, que recebem o suficiente para beber, que a medicação para os sintomas está sendo administrada e, em seguida, atualizar seus registros médicos. Esse desafio é enorme no início de uma epidemia, mesmo sem a administração de um novo medicamento não registrado. Precisamos de vários enfermeiros e equipes de higiene – e primeiro temos que treiná-los, porque a maioria deles não tem experiência com Ebola. Então, eu acho realmente impressionante que os medicamentos sejam oferecidos sistematicamente a todos os pacientes.
 
Eu não posso enfatizar suficientemente o quão crucial é essa honestidade. Toda a resposta de Ebola é baseada em confiança mútua. É sobre construir boas relações com famílias e comunidades. Caso contrário, os novos pacientes não se apresentarão e fica muito difícil romper as cadeias de transmissão da doença. Assim, as famílias dos pacientes podem nos chamar a qualquer momento. Nós deixamos eles entrarem no centro de tratamento de Ebola, mostramos a eles como cuidamos de seus entes queridos e eles vêm nos visitar com frequência. Se os pacientes estiverem doentes demais para andar, os trazemos à zona de visita em uma maca. Você precisa ser realmente humano e são os pequenos detalhes que podem fazer uma diferença real.
 
Conseguir essa confiança é muitas vezes difícil no início de uma epidemia, quando muitas pessoas morrem no centro de tratamento de Ebola. As pessoas começam a supor que os pacientes estão sendo mortos dentro do centro ou pelo menos estão sendo ajudados a morrer. Sempre há os rumores sobre ocidentais ou outros grupos que roubam órgãos ou sangue, ou trazem a doença para a comunidade. Algumas pessoas acreditam que a doença infecciosa é causada por feitiçaria. Isso não é novidade. A melhor resposta para isso é uma boa promoção da saúde. Você vai até as pessoas, explica-lhes o que é esta doença, como é transmitida, como pode ser gerenciada e como pode ser prevenida, e é honesto e humano.

Se você tiver sucesso no controle de surtos e reduzir o número de pessoas para as quais o vírus é transmitido, você terá menos pacientes para tratar e poderá passar mais tempo com as famílias. Com isso, a confiança na comunidade aumenta. Claro, se tivéssemos um tratamento melhor, menos pacientes morreriam e a confiança também aumentaria.
 
As pessoas nesta parte da RDC se locomovem muito. É importante entender esses movimentos porque é assim que o vírus se move também. Precisamos entender as famílias e como elas estão conectadas, como as pessoas buscam cuidados de saúde, como funciona sua rede de contatos. Compreender as pessoas é a chave para compreender o Ebola. E como o surto de Ebola se move, temos que nos mover também. Nós temos que ser flexíveis. Precisamos estar um passo à frente do surto.
 
Acertar isso realmente depende da sua equipe. Você precisa de um bom promotor de saúde e de um bom epidemiologista que conheça bem o Ebola. Porque não se trata apenas de dados, trata-se de conversar com as pessoas e estar genuinamente interessado nelas. Nenhuma ferramenta pode substituir isso. Precisamos fazer as perguntas certas e ser empáticos. Quando preencho um formulário de investigação de caso, escrevo todo tipo de informações adicionais nas bordas. Toda a folha de papel é coberta. Novas ferramentas podem melhorar nossa análise, mas elas precisam trabalhar junto com a percepção humana. É tudo sobre comportamento e seres humanos e confiança. ”
 

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