Na Nigéria, crianças em campos de deslocados precisam de proteção imediata

Além da falta de acesso à saúde, educação e nutrição adequada, as crianças estão expostas a ameaças de violência

msf281393_medium_1

As chamadas “cidades-guarnição” estão localizadas em toda a zona rural do nordeste da Nigéria, onde cidades inteiras ou enclaves são agora administrados por militares e acampamentos para pessoas deslocadas foram estabelecidos. Desde dezembro de 2016, MSF oferece atividades abrangentes de saúde e proteção nas cidades de Gwoza e Pulka, no estado de Borno, para pessoas que fugiram do conflito entre os grupos armados de oposição e militares e da violência angustiante presente nessa região há uma década.
Severine Courtiol Eguiluz, coordenadora de relações institucionais de MSF na Nigéria, fala sobre as necessidades urgentes das pessoas deslocadas e os desafios que MSF enfrenta para oferecer a proteção necessária, especialmente às crianças que viveram a maior parte de suas vidas em meio a esse conflito prolongado.

“Junto com a água, o abrigo, a alimentação e a saúde, a proteção é uma necessidade básica das pessoas deslocadas. Quando chegam ao acampamento, já passaram por muitos eventos traumáticos. Elas foram vítimas de violência e sobreviveram a agressões sexuais. Elas testemunharam seus entes queridos sofrerem abusos e serem mortos; suas casas foram danificadas e incendiadas; e as famílias foram separadas umas das outras. Para grupos especialmente vulneráveis, como famílias chefiadas por mulheres ou crianças desacompanhadas, a proteção imediata é necessária assim que chegam aos campos, para evitar expô-las a qualquer outro risco de violência”.

Para as crianças, crescer no meio de um conflito muda completamente suas vidas no longo prazo. Elas não têm acesso à escola ou à saúde e não recebem nutrição adequada ou vacinas. Há também uma chance de serem órfãs e, para as meninas, existe o perigo de serem forçada a se casar e o risco adicional de partos difíceis se elas engravidarem.

“Em um acampamento em Pulka, conheci duas meninas de 15 e 16 anos de idade que eram do mesmo vilarejo e haviam chegado juntas. A primeira estava grávida e a segunda já tinha um bebê de seis meses. Elas foram forçadas a se casar com membros de um grupo armado. Elas não tinham nenhum parente a quem se juntar no acampamento. Tudo o que tinham eram as roupas que usavam; uma delas não tinha sapatos. Nada mais. Elas pareciam perdidas. Elas não tinham ideia de como sobreviver sozinhas em tal situação. Foi muito doloroso vê-las. O que é mais doloroso é que elas são vítimas de longo prazo. Elas foram forçadas a se casar quando tinham cerca de 12 anos de idade ou menos, e foram abusadas desde então”, lembra Severine.

“Nós as identificamos em um campo de trânsito, demos a elas comida e as levamos para um hospital de MSF na cidade, onde foram oferecidos cuidados de pré-natal, suporte nutricional e suporte de saúde mental. Mas não havia nenhum abrigo privado disponível para elas nos primeiros dias e nenhum abrigo temporário foi identificado. Como resultado, elas ficaram no meio do campo de trânsito superlotado, com 12 mil outras pessoas, a maioria mulheres e crianças. Quando as crianças não têm ou não conseguem encontrar a família para serem reunidas, as famílias anfitriãs podem ser uma opção. Encaminhamos as duas meninas para outra organização para medidas adicionais de proteção, mas foi difícil encontrar uma família anfitriã porque uma delas estava grávida e a outra tinha um bebê. Eventualmente, e felizmente, elas encontraram pessoas do mesmo vilarejo que aceitaram as duas meninas em suas famílias.”

De janeiro a junho de 2019, MSF identificou 320 crianças desacompanhadas entre as pessoas que chegaram recentemente a Pulka, vindas de áreas controladas por grupos armados de oposição, de outros campos ou que retornam de Camarões, e que precisam de proteção e outras formas de assistência. A identificação de crianças desacompanhadas é fundamental para garantir sua proteção. Se elas não forem identificadas ao chegar, poderão perder apoio importante e ficarão expostas a todos os tipos de riscos associados a sua vulnerabilidade. Elas terão dificuldades para acessar assistência médica e alimentação, podem ter itens roubados e podem sofrer exploração sexual e violência.

“Quando MSF examina os recém-chegados, explicamos e divulgamos a mensagem de que estamos abertos a qualquer preocupação que eles tenham e que eles podem ir a um hospital de MSF a qualquer momento. Também procuramos pessoas que já estão nos acampamentos ou nas comunidades para falar sobre os serviços disponíveis. Temos visto crianças irem aos nossos hospitais em Gwoza e Pulka para proteção, e não para questões médicas. Quando podemos, deixamos que permaneçam em nosso hospital até entendermos completamente seus problemas, pois não há abrigos temporários em que possam ficar em segurança. Temos visto meninos e meninas adolescentes adotando mecanismos de enfrentamento prejudiciais, inclusive aceitando trabalhos perigosos, abuso de drogas e exploração sexual, que afetam tanto sua saúde quanto sua dignidade. Há famílias chefiadas por crianças com muitas responsabilidades, nas quais as crianças têm que cuidar dos irmãos mais novos”, explica Severine.

A situação no campo de trânsito torna essa proteção ainda mais desafiadora. As pessoas estão espremidas em abrigos comunitários sem privacidade; alguns são forçados a dormir do lado de fora, expostos a riscos adicionais. Os residentes do campo são altamente dependentes da ajuda humanitária e não há água, alimentos ou lenha suficientes para atender as suas necessidades. Como resultado, eles correm o risco de sair do perímetro de segurança em volta do campo. As autoridades civis estão praticamente ausentes do campo e, por isso, quase não há qualquer tipo de serviço social. Além disso, ainda há apenas uma presença limitada de organizações de proteção, devido, em parte, a problemas de segurança. No estado de Borno, o registro insuficiente de recém-chegados aos campos e o acompanhamento deles está tornando o reagrupamento familiar um grande desafio.

Severine, a coordenadora de relações institucionais de MSF na Nigéria, resume os desafios enfrentados no campo, especialmente por pessoas em situação de maior vulnerabilidade, como as crianças:

“Na proteção, todo caso tem dinâmicas diferentes. Cada história tem seu próprio drama e não existe uma solução única ou direta para todos eles. Há um estigma associado à volta de uma área controlada por grupos armados de oposição, especialmente para mulheres grávidas ou com filhos. Essas mães adolescentes acham difícil se reintegrar às suas famílias, quando ainda existe uma, e suas necessidades de saúde mental podem ser grandes.

Tão logo as crianças possam escapar da área de conflito direta, elas devem ser reconectadas com a infância. Eles precisam de um momento para brincar, rir e se reunir com seus amigos. Elas precisam voltar para a escola. Elas precisam estar em um ambiente seguro, onde possam confiar nos adultos e sentirem-se amadas e respeitadas.

Suas necessidades básicas, como alimentos, água e abrigo, precisam ser atendidas para reduzir o risco de exploração ou violência. As crianças desacompanhadas precisam de um espaço adequado para crianças, onde possam ficar temporariamente até que possam se reconectar à família ou outra solução seja encontrada. Cada caso precisa de atenção e gerenciamento individualizados. Para isso, as organizações humanitárias precisam estar presentes no terreno, trabalhando em conjunto dentro de um sistema de coordenação melhorado.

Qualquer criança, em qualquer país e em qualquer situação, deve ser protegida com cuidado, amor e dignidade. Como claramente adotado na Convenção sobre os Direitos da Criança, são os direitos de qualquer criança receber toda a proteção necessária e isso deve ser respeitado mesmo em conflito. É preciso fazer mais para ajudá-las a viver uma ‘vida normal’, mesmo em meio a uma situação que está muito longe do normal”.
 

Partilhar