“Não quis esperar que a violência chegasse”: fugir do conflito em Kivu do Norte

Mais de 80 000 pessoas chegaram à região de Minova, na província de Kivu do Sul, na República Democrática do Congo (RDC), depois de terem fugido do conflito na província vizinha de Kivu do Norte. A Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou uma resposta de emergência para alcançar pessoas nas áreas mais remotas

© Charly Kasereka/MSF, 2023

O sol acabou de nascer em Numbi, mas Rahema já chama as crianças. Não há tempo a perder: a pé, o caminho até Kalungu demora cinco horas. Uma das crianças mais velhas ficou encarregada de levar ao colo a bebé Innocent, enquanto que Rehema e os outros adolescentes levam as mercadorias mais pesadas, geralmente sacos de carvão.

O caminho de Numbi até Kalungu é acidentado e está agora coberto de lama, devido às chuvas intensas dos últimos tempos. À medida que vão caminhando, a família atravessa campos verdes, onde pasta o gado, e passam por mulheres que carregam caixas pesadas de cerveja nas costas, apoiadas por cordas atadas à volta da testa.

A cidade mercantil de Kalungu situa-se num local privilegiado, ligando as margens do Lago Kivu à área montanhosa de Hauts Plateaux. No entanto, Numbi está no meio de uma região isolada, onde até mesmo os motociclistas mais experientes têm sérias dificuldades em percorrer as estradas esburacadas. Mas embora seja uma vila remota, a região é rica em coltan, que é um mineral essencial no fabrico de aparelhos eletrónicos.

O caminho complicado de Numbi até Kalungu. Foto: Charly Kasereka/MSF, 2023

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Cerca de 10 horas depois, a família regressa a casa. Rehema, que tem 35 anos, está cansada e com dores nos pés: “É muito cansativo, porque há imensas subidas íngremes e quando termino a viagem, os meus pés ficam doridos”, explica. Com este trabalho, Rehema ganha apenas 3 000 francos congoleses por dia, o que equivale a cerca de 1.5€. É o suficiente para cobrir a renda do pequeno alojamento de barro em Numbi, onde a família está a viver. As condições não são as melhores: o telhado, coberto com uma capa de plástico, paus e vegetação, deixa entrar água quando chove.

“Com o dinheiro que sobra, compro milho”, conta Rehema. “Depois, se sobrar mais alguma coisa, compro sabão. Mas fico mal só de pensar que os meus filhos podem passar uma noite inteira sem comer.”

Conflito RDC
A vila montanhosa de Numbi. Foto: Charly Kasereka/MSF, 2023

 

Conflito a escalar

Rehema foi para Numbi, por causa do conflito que forçou cerca de um milhão de pessoas a fugir da província de Kivu do Norte no ano passado. A maioria refugiou-se noutras áreas da província, como nos arredores da capital, Goma. Porém, desde o início de 2023, cerca de 80 000 pessoas fugiram para Kivu do Sul: um terço dos deslocados encontrou refúgio na região de Hauts Plateaux, como Rehema e a família.

“Sabíamos que havia confrontos, mas nunca pensámos que chegariam a Rubaya, onde vivíamos”, frisa Rehema. “Um dia, em fevereiro, avistei militares a descer uma colina e ouvi tiros. Não quis esperar que a violência chegasse. Centenas de pessoas fugiram, tal como nós. Não consegui levar nada comigo, só os meus quatro filhos.”

A crise que se vive em Numbi tem sido invisível. A atenção internacional ainda não se virou para esta região da RDC, em parte porque muitas pessoas foram acolhidas por famílias locais, ou conseguiram alugar pequenas casas, em vez de viverem em grandes campos informais e improvisados. Mas apesar da falta de visibilidade, as necessidades são significativas e o apoio humanitário continua insuficiente.

Não quis esperar que a violência chegasse. Centenas de pessoas fugiram, tal como nós. Não consegui levar nada comigo, só os meus quatro filhos.”

– Rehema, natural de Rubaya, Kivu do Norte

Rehema e os quatro filhos. Foto: Charly Kasereka/MSF, 2023

“As pessoas deslocadas estão a viver em condições extremamente precárias e a situação está a ser agravada por uma falta de espaço, infraestruturas de saneamento e comida”, explica o coordenador de emergências da MSF em Kivu do Sul, Ulrich Crépin Namfeibona. “Estes fatores combinam-se para tornar as pessoas mais vulneráveis a doenças.”

 

Partilhar camas no hospital

Depois de uma explosão de casos de sarampo na zona de saúde de Minova, o hospital em Numbi, onde a MSF está a prestar apoio, está a funcionar sobrecarregado. Há três, ou até mesmo quatro crianças por cama na maioria das salas do hospital, apesar da capacidade da instalação ter sido recentemente ampliada. Para além dos pacientes de sarampo, as equipas da MSF estão a observar um número crescente de crianças com co-infeções e desnutrição.

A enfermeira Francine observa uma criança no centro de nutrição terapêutica do hospital de Numbi. Foto: Charly Kasereka/MSF, 2023

“O meu filho mais novo está doente com sarampo e foi internado no hospital de Numbi há três dias”, conta Manihiro, uma jovem com 20 anos que foi encaminhada para o hospital pelo centro de saúde em Lumbishi, uma vila a poucos quilómetros de distância. “É o meu terceiro filho a contrair a doença. Vim aqui, porque os serviços são gratuitos. Tentei vir de mota, mas era impossível encontrar um motociclista, visto que o percurso está em muito mau estado. Demorei o dia inteiro a chegar ao hospital.”

Oriunda de Masisi, em Kivu do Norte, Manihiro chegou a Hauts Plateaux em março, pouco tempo depois dos pais serem mortos. Está agora a viver num pequeno quarto na vila, com o marido e os quatro filhos. “Não temos apoio para além daquilo que a igreja fornece. Com a insegurança. Penso que será muito complicado regressar a casa em breve.”

Demorei o dia inteiro a chegar ao hospital.”

– Manihiru, oriunda de Masisi, Kivu do Norte

Na mesma sala está Josephine, uma viúva de 32 anos com sete filhos, natural de Walikale, Kivu do Norte. O mais novo, Valentin, foi diagnosticado com malária e sarampo, mas depois de passar seis dias no hospital, o estado dele começou a melhorar.  “Primeiro, pensei que era um caso simples de malária e eu própria dei-lhe medicamentos”, explica. “Mas ele não melhorava e por isso é que vim ao hospital.”

Josephine e os filhos demoraram um mês a chegar a Numbi. “As crianças sofreram muito, as pernas delas ficaram muito magoadas. Durante o caminho, um grupo armado levou tudo o que tínhamos. Agora, tudo o que tenho é o que estou a usar. Aqui a MSF fornece comida e sabão aos pacientes, mas quando nos derem alta, não teremos apoio”, desabafa, enquanto limpa as lágrimas do rosto.

Agora, tudo o que tenho é o que estou a usar. Aqui a MSF fornece comida e sabão aos pacientes, mas quando nos derem alta, não teremos apoio”

– Josephine, oriunda de Walikale, Kivu do Norte

Josephine e o filho, Valentin no hospital em Numbi. Foto: Charly Kasereka/MSF, 2023

 

Um ciclo constante de violência e deslocações

O conflito em Kivu do Norte agravou o ciclo de violência e deslocações que tem sido constante nas últimas três décadas nesta região da RDC. A situação é muito complexa: dezenas de grupos armados, com distintos interesses e afiliações políticas, combatem uns contra os outros, com alianças que mudam ao longo do tempo.

Birandala e Riziki, um casal com cerca de 50 anos, conhecem bem esta história. Ao longo do último quarto de século tiveram de fugir de casa e deixar tudo para trás cinco vezes. Cada vez que o fizeram, começaram do zero noutro lugar.

“Quando deixamos tudo para trás, a coisa mais importante é ter uma boa saúde, comida e um sítio para dormir. Já passámos dias sem água nem comida e, por isso, até comecei a prever a minha loucura. Mas o que nos dá força é o amor que temos um pelo outro e pelas nossas quatro crianças. Se pudesse enviar uma mensagem para o resto do mundo seria apenas: precisamos de paz.”

As equipas da MSF começaram a trabalhar em Minova em dezembro de 2022, para apoiar as autoridades de saúde na resposta a uma epidemia de cólera. Com a chegada de pessoas deslocadas de Kivu do Norte, a MSF iniciou um projeto de emergência em março de 2023.

Entre o mês de março e maio, os profissionais da organização trataram 2 019 pacientes – a maioria crianças com sarampo, desnutrição aguda grave e cólera – nos hospitais em Minova e Numbi. As equipas de água e saneamento têm clorado o fornecimento de água, de forma a torná-lo seguro para consumo, e construído latrinas e chuveiros.

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