RDC: uma comunidade unida pelo sentimento de viver com fístula

Nos meses de julho e agosto de 2016, MSF organizou um campo para atender pacientes com fístula vesico-vaginal em Shamwana, onde 40 mulheres foram operadas

RDC: uma comunidade unida pelo sentimento de viver com fístula

Por Noor Cornelissen, responsável por Assuntos Humanitários de MSF

Atrás do hospital de Shamwana, na província de Tanganyika, sul da República Democrática do Congo, há um pequeno vilarejo. Ele tem uma cerca de bambu recentemente construída, atrás da qual vive uma comunidade que a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) ajudou a criar, pelo menos por algumas semanas. Em termos práticos, o local não pode, de fato, ser chamado de vilarejo – mas é, sem dúvidas, uma comunidade, ainda que seja pequena e conte com menos de 80 pessoas. A maioria não é moradora de Shamwana, mas chegou recentemente de outros lugares da província. Essas pessoas vivem comunitariamente em cinco barracas grandes, dividindo as refeições e cuidando um do outro. Há algo extraordinário nesse lugar, como se houvesse uma parede invisível ao redor dessas pessoas, que não só as separa do resto do mundo, mas também as une nos seus próprios mundos.

O ‘vilarejo’ é composto por 40 mulheres e seus cuidadores. O portão de entrada tem uma placa escrita ‘VVF Camp’. VVF é a sigla em inglês para Fístula Vesico-Vaginal. Essas pessoas, em sua maioria mulheres, viajaram para Shamwana para fazer parte do campo de VVF que MSF organizou do início de julho ao fim de agosto de 2016.

Durante desse período, por cerca de quatro semanas, um cirurgião especialista realizou cirurgias delicadas para reparar as fístulas dessas mulheres. A fístula é um pequeno buraco entre o canal da bexiga e o da vagina e/ou do reto que causa incontinência crônica. Para grande parte das mulheres, as fístulas se manifestam em decorrência de trabalhos de parto com alguma obstrução ou por períodos longos sem intervenção médica, sendo mais comum nos partos caseiros.

É uma das consequências mais graves de complicações no parto, mas na maioria dos casos é uma condição evitável. Se a mulher receber cuidados pré-natais adequados e tiver assistência durante o parto, muito provavelmente ela não sofrerá com a fístula. A prevalência do problema entre mulheres grávidas em uma certa população pode ser vista como indicador de um sistema de saúde desestruturado. Ainda que cada mulher no campo de VVF tenha sua própria história, elas chegaram ali procurando um mesmo tratamento e com um objetivo em comum: a cura. Essa é uma jornada física e psicológica, que não requer apenas um cirurgião, mas também uma equipe de enfermeiros, parteiras, agentes de saúde mental, cuidadores, e, talvez o mais importante: outros pacientes que se tornam companheiros. Durante tempos de extrema vulnerabilidade, tanto pela condição física como pela esperança por cura, essas mulheres formam os pilares de uma comunidade recém-criada.

Ao entrar pelo portão, me deparo com um turbilhão de sons e cheiros. Da terceira barraca em diante, uma mulher encoraja sua vizinha a beber mais água para se preparar para a cirurgia no dia seguinte. Em outra barraca, uma celebração discreta de um grupo pode ser ouvida depois de a primeira gota de urina entrar no cateter de uma paciente. Embaixo do tukul (casa), sobe o cheiro de óleo fervendo; a ‘cozinheira do vilarejo’ está preparando mbuzi (cabra) e bukari (mandioca) para o jantar. Ao lado de uma árvore central, a mobilizadora da comunidade, Mama Jolie, canta e encoraja, de forma contagiante, as mulheres a dançarem. Mais tarde, no mesmo dia, o sacerdote nomeado pela comunidade é visto conduzindo uma oração, guiado pela mistura de várias religiões, enquanto, em um canto, a obstetriz Dorothea pode ser ouvida discutindo o horário de cirurgia com o ‘chefe’ do vilarejo, que por sua vez é o cuidador de uma das pacientes.

Superado pelas minhas impressões, eu entro na primeira barraca, que é a área pós-operatória. Seis mulheres estão deitadas em suas camas, relaxadas, conversando com as duas enfermeiras que estão sentadas perto. Antes de qualquer coisa, a enfermeira Gerardine grita: “São três da tarde; todas bebendo!” Garrafas plásticas surgem de dentro de pagnes (panos) e é possível ouvir o som da água sendo engolida com vontade. Uma mulher no canto esquerdo olha ao seu redor de forma curiosa antes de sua vizinha gritar: “Você as escutou: beba!” As mulheres riem, viram de costas e aplaudem de modo encorajador. Do lado de fora, os maridos carregam baldes de água, reabastecendo-os para a próxima hora.

Depois de passar da segunda e da terceira barracas, que estão vazias, é possível ver as ‘moradoras’ do vilarejo sentadas em círculo embaixo de uma árvore. De longe, o enfermeiro Ravel as observa. “Elas chegaram aqui hesitantes e com dúvidas”, diz ele. “Isso é verdade? Será que é possível ser curada? Elas tinham perdido parte da autoestima. Mesmo se elas fossem a um centro de saúde, seriam colocadas em um canto para esconder o cheiro. Mas aqui não há vergonha. Estamos aqui por elas e com elas. Conforme cada uma delas vai voltando da cirurgia, percebo que sua confiança vai aumentando. As três palavras que eu mais escuto são uma duvidosa e maravilhosa: ‘você está seca?’. O laço entre elas é só o início de seu retorno à sociedade.” Conforme ele vai falando, ele olha para os corpos coloridos embaixo da árvore. Alguns dançam, outros balançam e outros ficam próximos aos seus baldes.

É uma comunidade unida pelo sentimento compartilhado de compreensão da realidade de viver com fístula. Algumas dessas mulheres foram expulsas das próprias casas e o ‘vilarejo’ lhes ofereceu aceitação, empatia e, por fim, inclusão. Testemunha do poder dessa comunidade, uma mulher diz: “para aquelas que não foram bem-sucedidas na cirurgia, decidimos criar nosso próprio vilarejo de fístula. Vamos viver juntas e com dignidade.”

No final do dia, ao sair pelo mesmo portão em que entrei, percebo que é a união dos membros da comunidade, mais que as cercas de bambu, que sustenta o círculo de proteção. Em alguns dias, 40 mulheres com uma força inabalável começaram a trilhar seus próprios caminhos em direção à cura física e psicológica – com dignidade e em solidariedade.

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