Um ciclo de violência sem fim para a população do Leste da República Democrática do Congo

Marie Brun, nossa coordenadora de emergências na província de Kivu Norte, na República Democrática do Congo, descreve a intensificação dos combates entre vários grupos armados e as forças armadas congolesas, desde o início do ano, assim como as consequências para a população civil

Conflito no Leste da República Democrática do Congo
©️ Hugh Cunningham
A insegurança parece estar a afetar cada vez mais as pessoas já deslocadas nos Kivus, particularmente em torno de Goma. Como está a situação atualmente?

“Nos últimos dois anos, temos visto deslocações regulares de pessoas a fugir dos combates na província de Kivu Norte e, mais recentemente, em Kivu Sul. Muitas pessoas e famílias deslocadas procuraram refúgio em campos rudimentares nos arredores de Goma, capital de Kivu Norte.

Nas últimas semanas, Goma tem sido gradualmente cercada por várias frentes de combate e existem cerca de 600 000 a 1 milhão de pessoas deslocadas que se juntaram aos 2 milhões de habitantes da cidade.

A concentração de homens armados dentro e em torno dos campos densamente povoados, bem como a crescente proximidade das posições militares, levaram a um aumento geral do nível de violência: os civis são apanhados no fogo cruzado entre os diferentes grupos armados, e são feridos, mortos, ou tornam-se sobreviventes de violência sexual.

Em Goma, as pessoas deslocadas encontram-se agora numa situação semelhante à que inicialmente haviam tentado fugir. Estão em completa insegurança e não têm saída. Os campos de deslocados devem ser respeitados por todas as partes em conflito e os combates nas proximidades devem parar.

Essa insegurança é agravada por condições de vida extremamente precárias. As pessoas vivem em campos densamente povoados, em condições sanitárias deploráveis, sem acesso adequado a serviços de água e saneamento, em abrigos feitos de lençóis de plástico, em terrenos irregulares de rocha vulcânica. O acesso a água potável e alimentos é muito difícil e imprevisível.”

 

Em Goma, os deslocados encontram-se agora numa situação semelhante à que inicialmente haviam tentado fugir.”

 

Conflito no Leste da República Democrática do Congo MSF
Para levar a cabo atividades, transportar provisões e prestar cuidados, as nossas equipas viajam de mota. ©️ Hugh Cunningham, 2024

 

Qual é o impacto da violência na vida dos civis?

“De acordo com as nossas observações, o fogo de artilharia pesada nos campos em torno de Goma causou 23 mortes e 52 feridos, desde fevereiro de 2024. Segundo as Nações Unidas, pelo menos 18 civis, a maioria mulheres e crianças, morreram e outros 32 ficaram feridos em bombardeamentos que afetaram vários locais de deslocados internos na manhã de 3 de maio.

Enfrentamos trocas de tiros e explosões de granadas dentro dos campos, tanto de dia como à noite, desde o início do ano. Registámos 24 incidentes com artilharia pesada, no interior ou nas imediações dos campos onde trabalhamos, e as nossas equipas receberam 101 feridos sem risco de vida no hospital de Kyeshero, transferidos pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que trata os pacientes com ferimentos mais graves. Estamos também preocupados com o tempo que os pacientes demoram a procurar cuidados, devido aos riscos de segurança associados.

Em abril, nos campos de Shabindu, Rusayo e Elohim, tratámos mais de 1 700 novos casos de violência sexual, 70 por cento dos quais perpetrados por portadores de armas. A MSF consegue fornecer cuidados médicos e psicológicos aos sobreviventes, mas as opções de encaminhamento para apoio legal, abrigos seguros e outros serviços de proteção são muito limitadas. Enquanto a maioria dos sobreviventes de violência sexual tratados pelas nossas equipas relatam terem sido violados enquanto recolhiam lenha, estamos também a ver um número crescente de agressões dentro dos campos. Além disso, foram igualmente relatados casos de violação em grupo.

Como se não bastasse, os combates recomeçaram em Kibirizi, uma cidade de receção e trânsito para milhares de deslocados, localizada no cruzamento de vários eixos estratégicos em Kivu Norte. Em maio, eclodiram combates violentos em áreas povoadas, tanto nas cidades como perto dos campos, o que resultou na destruição de infraestruturas e recursos vitais, bem como num êxodo de pessoas novamente deslocadas pelos combates. O número de casos de violência sexual também disparou, com um aumento de cinco vezes no número de sobreviventes de violência sexual tratados em instalações de saúde apoiadas pela MSF em Kibirizi e mais a Sul na zona de saúde de Bambo.

Com a intensificação das hostilidades numa nova zona de combate ativo desde fevereiro, as trocas de tiros e artilharia estão também a afetar regularmente os civis que vivem dentro e nas imediações da cidade de Minova, em Kivu Sul, onde quase 200 000 pessoas se refugiaram este ano.”

 

Conflito no Leste da República Democrática do Congo MSF
Para chegar a Minova, a equipa da MSF tem de atravessar um rio. ©️ Hugh Cunningham, 2024

 

A equipa da MSF não foi poupada de atos de intimidação por homens armados.”

 

Como é que a MSF continua a trabalhar neste contexto?

“Em Kivu Norte e Sul, as nossas equipas estão a trabalhar num contexto de segurança volátil, com dificuldades de circulação e entrega de ajuda humanitária, e acesso incerto aos centros de saúde que apoiamos. Apesar da natureza médica e humanitária da nossa resposta a esta crise, a equipa da MSF não foi poupada de atos de intimidação por homens armados.

A MSF suspendeu atividades em várias ocasiões, principalmente por causa de confrontos perto dos campos em Goma e ao redor de Minova. A estrada de Kivu Sul para Goma está atualmente bloqueada e as provisões só podem ser entregues por barco a partir do Lago Kivu, ou por caminhos extraviários de mota. Os combates também impedem que os materiais médicos de Goma cheguem às áreas periféricas onde outros combates estão a ocorrer.

Desde o início do ano, as equipas médicas têm recebido dezenas de feridos de guerra no território de Masisi, onde a MSF apoia os hospitais gerais de Masisi e Mweso, mas durante meses o acesso rodoviário tem sido extremamente difícil e arriscado. Isso tem dificultado as atividades humanitárias e privado as pessoas de ajuda vital. Relembramos a todas as partes em confronto que, em tempos de conflito, são obrigadas a respeitar o direito humanitário internacional e todas as proteções conferidas aos civis, instalações de saúde, pacientes e pessoal médico.”

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