Inconcebível: EUA planeiam a destruição de contracetivos no valor de 9,7 milhões de dólares

A MSF repudia a decisão de destruir estes medicamentos essenciais, a qual terá consequências devastadoras para as comunidades nas quais a organização médica-humanitária trabalha

Uma paciente conversa com uma parteira no centro de saúde de Chingussura, na Beira, Moçambique, onde a MSF apoia o Ministério da Saúde na prestação de cuidados para o aborto seguro e serviços de maternidade.
© Miora Rajaonary

O plano do governo dos Estados Unidos de destruir contracetivos no valor de 9,7 milhões de dólares (cerca de 8,3 milhões de euros) é um desperdício insensível que põe em risco a saúde e a vida de mulheres e raparigas, considera a Médicos Sem Fronteiras (MSF). Relatos noticiosos indicam que estes medicamentos já tinham comprados e estavam prontos a ser enviados para regiões fragilizadas e afetadas por conflito.

“Os contracetivos são artigos de saúde essenciais e que salvam vidas”, frisa a diretora-executiva da MSF Estados Unidos, Avril Benoît. “A MSF tem visto em primeira mão os benefícios positivos para a saúde quando as mulheres e raparigas podem tomar livremente decisões sobre a própria saúde, optando por prevenir ou adiar a gravidez – assim como as consequências perigosas que existem quando não o podem fazer. A decisão do governo dos EUA de incinerar contracetivos, no valor de milhões de dólares, é um ato intencionalmente imprudente e prejudicial contra mulheres e raparigas em todo o lado”, prossegue.

Os contracetivos – incluindo implantes, pílulas orais contracetivas, contracetivos injetáveis e dispositivos intrauterinos – foram comprados com o dinheiro de impostos de contribuintes norte-americanos destinado a financiar programas de planeamento familiar e de saúde reprodutiva da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês). Estes programas foram encerrados com a decisão do governo dos EUA de lhes retirar o financiamento no início deste ano.

As equipas da MSF veem com enorme apreensão a escassez de fornecimentos destes artigos médicos. Nas comunidades onde a organização médica-humanitária trabalha – seja naquelas que sofrem os impactos de conflito ou em contextos de surtos de doenças, de desastres naturais ou causados pela ação humana, e onde existe exclusão no acesso a cuidados de saúde – obter contracetivos é já muito limitado atualmente. Locais onde antes as pessoas dependiam dos fornecimentos de contracetivos financiados pela USAID correm agora um maior risco de interrupções na cadeia de fornecimento e de ruturas de stock.

 

Victoire, parteira da MSF, demonstra como inserir um dispositivo intrauterino (DIU) durante uma sessão de formação para parteiras e enfermeiras do serviço público de saúde em Toviklin, no Benim.
Victoire, parteira da MSF, demonstra como inserir um dispositivo intrauterino (DIU) durante uma sessão de formação para parteiras e enfermeiras do serviço público de saúde em Toviklin, no Benim. © Adrienne Surprenant/MYOP, 2025

 

Segundo relatos noticiosos, estes contracetivos, que estão armazenados na Bélgica, serão destruídos no final deste mês de julho, apesar de se encontrarem dentro das datas de validade e em bom estado. A data mais próxima de fim de validade de alguns dos contracetivos é o ano de 2027, e muitos não expiram antes de 2031.

 

40 milhões de dólares em dinheiro dos contribuintes retidos na cadeia de abastecimento

É estimado que contracetivos no valor de 40 milhões de dólares (cerca de 34,1 milhões de euros) estejam retidos em vários pontos na cadeia global de abastecimentos de saúde. Notícias publicadas recentemente indicam que existe um outro armazém nos Emirados Árabes Unidos de contracetivos adquiridos pela USAID, mas não são conhecidos os planos que o governo dos EUA tem para aquelas provisões médicas.

A MSF urge por transparência da parte do governo norte-americano no que toca à extensão e à natureza dos abastecimentos que estão armazenados e se destinavam a contextos humanitários e de saúde global, assim como dos que serão provavelmente destruídos. A organização médica-humanitária insta também a que sejam conhecidas as justificações usadas para destruir estes fornecimentos médicos.

“O acesso à contraceção é crucial para a saúde, autonomia e autodeterminação das mulheres e raparigas. Não podemos minimizar a importância que tem”, sustenta a especialista da MSF EUA para políticas e advogacia, Rachel Milkovich. “Temos de nos recordar que estes contracetivos tinham um destino. Mulheres e raparigas estão à espera de os poder usar. É inconcebível pensar que estes produtos de saúde vão ser incinerados quando são tão necessários em todo o mundo.”

 

Em Tumeremo, no estado venezuelano de Bolívar, as mulheres enfrentam dificuldades para ter acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva.
Em Tumeremo, no estado venezuelano de Bolívar, as mulheres enfrentam dificuldades para ter acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva. © Jesus Vargas, 2022

 

A destruição iminente destes contracetivos é a mais recente de uma série de medidas adotadas pelo governo dos EUA, continuando a agravar a crescente emergência de saúde global que o mesmo criou ao encerrar abrutamente no início deste ano a prestação de assistência a outros países, no valor de milhares de milhões de dólares.

Só neste mês de julho, o governo norte-americano decidiu incinerar 500 toneladas de assistência alimentar de emergência, cuja validade expirara porque os EUA se recusaram ao longo de vários meses a autorizar que fosse entregue. Esta destruição de artigos nutricionais é feita na mesma altura em que estão a morrer crianças devido a desnutrição no Sudão, em Gaza e em muitos outros países. O governo dos EUA deixou também expirar a validade de quase 800.000 vacinas contra a mpox – que tinham sido prometidas a diversos países –, mesmo com os casos desta doença a continuarem a propagar-se.

“O governo dos EUA fabricou este problema”, aponta a diretora-executiva da MSF Estados Unidos. Avril Benoît explica que “destruir artigos médicos valiosos que já tinham sido pagos pelos contribuintes norte-americanos não ajuda em nada no combate ao desperdício nem melhora a eficiência”. “Este governo está disposto a deixar as provisões alimentares apodrecerem e a queimar medicamentos de controlo da natalidade, pondo em risco a saúde e a vida das pessoas para promover uma agenda política”, sublinha ainda.

 

Mais de 150 mil dólares para destruir, apesar das ofertas de compra feitas

Relatos noticiosos estimam que a destruição dos contracetivos sinalizados para incineração, e que têm de ser transportados do armazém na Bélgica onde se encontram para um local em França especializado para o efeito, irá custar pelo menos uns adicionais 167.000 dólares (cerca de 143.000 euros). Uma vez que muitos destes materiais médicos contêm ingredientes hormonais ativos, um volume em tão larga escala de contracetivos tem de ser incinerado duas vezes para ser destruído em segurança. Esta não é uma maneira eficiente nem responsável de usar os fundos dos EUA.

Outras organizações, como a MSI Reproductive Choices e entidades que lhe são parceiras, disponibilizaram-se para pagar o envio e distribuição destas provisões médicas, mas o governo norte-americano recusou estas ofertas. A MSF está empenhada em ajudar a identificar alternativas viáveis e inovadoras para evitar que estes contracetivos sejam incinerados e destruídos. Em última análise, a forma mais prudente de avançar neste assunto é fazer com que os contracetivos cheguem o mais rapidamente possível aos Ministérios da Saúde nos países que deles necessitam.

A MSF não aceita financiamento por parte do governo dos EUA, mas em muitos países onde as equipas da organização médica-humanitária trabalham é prestado apoio no último passo da administração de contracetivos providenciados aos Ministérios da Saúde. A escassez destas provisões no stock dos governos dos países vai criar lacunas que a MSF não tem capacidade para preencher.

“Não há desculpa para destruir estes contracetivos”, reitera Avril Benoît. “A realidade é que podem ser utilizados por prestadores de saúde em todo o mundo, especialmente em lugares que dependem dos programas de contraceção da USAID e que registam agora graves lacunas devido à decisão do governo dos EUA em cortar de forma drástica a ajuda externa e encerrar a agência por completo”, nota ainda a diretora-executiva da MSF Estados Unidos.

As lacunas deixadas pela retirada de fundos do governo norte-americano para o planeamento familiar e saúde reprodutiva da USAID estão a causar disrupção em todo o sistema global de prestação destes serviços de saúde. O governo dos EUA era o maior doador bilateral do sistema de planeamento familiar e saúde reprodutiva no mundo, tendo contribuído com 607,5 milhões de dólares no ano fiscal de 2024. Esta mudança põe em perigo o progresso de longa data que foi alcançado para melhorar a saúde das mulheres e das raparigas em todo o mundo.

 

Concracetivos são cuidados de saúde essenciais

Uns 164 milhões de mulheres e raparigas, dos 15 aos 49 anos, desejam adiar ou prevenir a gravidez mas não usam atualmente um método moderno de contraceção. Os contracetivos podem evitar uma gravidez não desejada de forma segura e eficaz. Uma gravidez que não é desejada ou planeada como oportuna, pode aumentar o risco de complicações na gravidez, incluindo a morte e lesões maternas.

Tais riscos para a saúde são já altos em contextos fragilizados ou afetados por conflito e têm vindo a ser amplificados naqueles que anteriormente as pessoas dependiam da USAID.

Destruir provisões médicas essenciais vai restringir e reduzir ainda mais a capacidade dos governos locais e outras entidades como a MSF de dar resposta ao aumento das necessidades. Nenhuma entidade sozinha conseguirá ampliar a escala e preencher essas lacunas de um dia para o outro.

 

A MSF reconhece que além das mulheres e raparigas, também as pessoas transgénero, intersexuais e de género não-binário engravidam e precisam de serviços contracetivos. A organização médica-humanitária trabalha para que os serviços que presta sejam inclusivos em matéria de género, e esforça-se por ultrapassar todas as barreiras no acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva.

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