Nigéria: uma crise negligenciada no estado de Benue

MSF trabalha na região apoiando pessoas deslocadas pelos conflitos entre fazendeiros e pastores de animais

Nigéria: uma crise negligenciada no estado de Benue

Os estados do chamado cinturão médio da Nigéria, Adamawa, Benue, Kaduna, Plateau, Nasarawa e Taraba, acolhem o maior número de pessoas deslocadas internamente no país, fora da região nordeste. A maioria delas foi deslocada pelo chamado conflito “fazendeiros-pastores”. Pelo menos 160 mil pessoas estão espalhadas pelo estado de Benue, de acordo com estimativas de 2019.
 

As comunidades deslocadas, principalmente agricultores, estão vivendo em acampamentos oficiais e informais, em assentamentos – como mercados ou escolas – ou residem com famílias na “comunidade anfitriã” (ou seja, com pessoas que já se estabeleceram na área). As estimativas oficiais ainda não incluem muitos milhares de pessoas que foram deslocadas em 2020. Além disso, há mais de 58.400 refugiados camaroneses vivendo na Nigéria – a maioria em estados do cinturão médio, mais de 8 mil em Benue.  

O conflito agricultor-pastor

Embora multifacetado e complexo, o conflito entre fazendeiros e pastores de animais é em grande parte impulsionado pela competição por recursos, em particular comida e água. Os pastores migratórios estão sendo empurrados cada vez mais para o sul em busca de terras para o gado. Algumas das causas subjacentes incluem a degradação ambiental e os impactos das mudanças climáticas, como a desertificação, reduzindo a disponibilidade de terras férteis. Além disso, a violência e a insegurança constantes nas áreas de pastagem tradicionais no norte estão forçando muitos pastores a fugir. A terra que os pastores ocupam, no entanto, é reivindicada pelos agricultores. Em 2018, uma escalada repentina e violenta de confrontos anteriormente sazonais entre pastores e fazendeiros, forçou cerca de 300 mil pessoas a saírem de suas casas e matou 1.300 delas.  

MSF trabalha em Benue desde 2018, principalmente com comunidades agrícolas deslocadas. Há muito mais a ser feito para entender o que está acontecendo em outros estados do cinturão médio. Em particular, para entender mais sobre as comunidades pastoris frequentemente esquecidas e o impacto que a violência – incluindo de guardas de gado e grupos de vigilantes – tem em suas vidas.

Em Benue, oferecemos uma variedade de serviços de saúde primários, incluindo tratamento para malária e violência sexual e de gênero; promoção da saúde, inclusive para COVID-19; e abrigo e serviços de água e saneamento, tais como construção e manutenção de latrinas e poços e distribuição de sabão. Em todas as áreas do nosso projeto em Mbawa e Abagana (dois dos campos oficiais de deslocados internos) e no ambiente informal de Old Market, vimos o número de pessoas deslocadas quase dobrar em 2020, de 6.619 em janeiro para 11.735 em julho.

A crise continua, mas a atenção global e a resposta humanitária, não. Um pequeno fundo criado pela ONU em 2018 (4 milhões de dólares para os estados de Benue e Nasarawa) acabou há muito tempo. A maioria das agências já havia saído no ano passado. A COVID-19 teve um impacto adicional sobre os poucos que permaneceram, já que muitos suspenderam as atividades devido a restrições de viagens e pessoal ou desviaram recursos limitados para se preparar para a pandemia.  Desde então, algumas organizações voltaram, trazendo um aumento na distribuição de alimentos e melhorias em água e saneamento. Este é um desenvolvimento positivo, mas não é suficiente. Relatórios de junho de 2020 mostram que o orçamento do Ministério da Saúde da Nigéria pode ser reduzido em 43%, outro motivo de séria preocupação.

Falta de abrigo e exposição à malária
 
Em Benue, a maioria dos deslocados chega com pouco ou nenhum bem. Durante uma avaliação no campo de deslocados de Naka, a residente Philomena Agbobo disse para MSF: “Depois que mataram meu marido, peguei meus cinco filhos e vim para cá. Cheguei como você me vê agora, sem posses. Os pastores queimaram minha casa e tudo o que eu tinha. Não tenho tapete para dormir, nem sabonete para me lavar. Conseguir água potável também é um grande desafio. Tenho apenas uma rede mosquiteira e a utilizo para proteger o meu filho mais novo.” Outro residente de Naka, Orchi Godwin nos conta: “Dormimos na varanda [de um prédio de uma escola antiga] e nem mesmo temos redes mosquiteiras. As mulheres dormem dentro de casa para que tenham seu próprio espaço. Há mais pessoas chegando aqui e algumas delas não têm onde dormir.”

No campo de deslocados internos Mbawa, nossas equipes viram duas ou três famílias compartilhando um único abrigo. Em Old Market, várias famílias se amontoam sob as árvores ou em bancas desativadas do mercado enquanto tentam desesperadamente se abrigar.
 
Superlotação, má gestão de resíduos e problemas de drenagem significam que muitas fontes de água são sujas e inseguras. As doenças prosperam nessas condições. A malária é uma preocupação particular, pois os mosquitos se reproduzem em poças de água estagnada. Nossas equipes viram um aumento exponencial de pacientes com malária nos últimos meses, de 119 em maio para 666 em junho e 1.269 em julho, a maioria crianças menores de cinco anos de idade. A falta de lugar para se abrigar também aumenta o risco de doenças de pele e infecções respiratórias.

Sem chance de plantar ou colher

Muitas fazendas antes bem-sucedidas foram destruídas. Mesmo onde a terra ainda é utilizável, muitas pessoas relatam estar com muito medo de voltar a plantar ou colher. “Faz muito tempo que estou aqui. Costumávamos ir e vir – voltar para casa, para a fazenda e depois voltar aqui com segurança – temos feito isso desde 2015. Mas, a partir do ano passado, tornou-se muito mais perigoso voltar para casa”, continua Orchi.
 
Hoje, muitos daqueles que costumavam produzir safras em uma área conhecida como a “cesta de alimentos” da Nigéria não podem mais comprar alimentos para si próprios. À medida que a oferta de alimentos diminui, os preços aumentam. “Agora, quando você vai ao mercado comprar um saco de milho, custa 15 mil nairas (cerca de 210 reais). Costumava ser apenas 5 mil nairas (cerca de 70 reais). Eu plantava milho e agora está difícil até para comprá-lo!”, diz Edward Nyam, um ex-fazendeiro do campo de Mbawa.
 
Desde o ano passado, as distribuições de alimentos têm sido menos regulares e ainda mais reduzidas com a COVID-19. Houve melhorias recentemente, mas as distribuições ainda tendem a atender apenas aos campos oficiais. De acordo com John Alenda em Old Market “temos dois grandes desafios aqui, comida e abrigo. Antes da pandemia, havia mais distribuição de alimentos. Existem 5 mil pessoas morando aqui. Como este não é um campo de deslocados oficial, é mais difícil conseguir suprimentos”.
 
As pessoas recorrem a medidas desesperadas. “Não há comida aqui. Quando ela estava bem, minha mãe ia ao mercado e pegava os grãos que caíam no chão, depois ela usava uma peneira para separar os grãos da terra”, diz Orchi. Ele não é o único a compartilhar essa experiência.
 
O retorno não está à vista
 
Apesar dos desafios, nenhuma das pessoas com quem falamos pensa que pode ir para casa, pelo menos não a curto prazo. “Quando penso em voltar para casa, me lembro que é melhor um cachorro vivo do que leão morto. Houve outros que tentaram retornar aos seus vilarejos e foram mortos. Não temos esperança por agora, mas talvez um dia”, disse Ugber Emmanuel, no campo de Mbawa.  

Muitas pessoas falam sobre os desafios de adaptação às suas novas vidas. “Você não tem mais o conforto de casa. Você não apenas compartilha com a família, você compartilha com todos e nada é nosso”, diz Oussange, uma senhora idosa no campo de Mbawa. Frequentemente, as pessoas nos falam sobre seus temores em relação ao futuro: “Mesmo se voltássemos para casa sem violência, teríamos que começar tudo de novo. Não há comida ou abrigo esperando por nós em casa. Espero que as pessoas ouçam minha voz e entendam que precisamos de ajuda”, conclui Agbobo.

Esta crise humanitária não pode mais ser ignorada. Como MSF, pretendemos fazer mais, para alcançar as comunidades afetadas em todos os lados desta crise. Para ir além de Benue, ainda mais no cinturão médio. Mas nós não podemos fazer isso sozinhos. No mínimo, medidas básicas de água, saneamento, abrigo, saúde e proteção devem ser introduzidas. Alcançar isso requer engajamento e compromisso, tanto financeiro quanto físico, dos governos estadual e federal da Nigéria, agências humanitárias e das Nações Unidas.

 

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