“A raiva não serve para nada”: recuperando a esperança em um hospital de Noma

A enfermeira britânica Scarlett compartilha como foi sua experiência no Hospital Infantil de Noma, em Sokoto, na Nigéria, o único do mundo dedicado ao tratamento da doença

"A raiva não serve para nada": recuperando a esperança em um hospital de Noma

Noma é uma doença negligenciada devastadora, que afeta crianças que já sofrem com desnutrição, malária e outros fatores relacionados à pobreza.

Lembro que, na primeira manhã em que cheguei ao hospital, estava ansiosa para ajudar meus novos colegas a cuidar de nossos pacientes. Mas, ao tirar o curativo do rosto da primeira criança, fui atingida por um sentimento extremo de raiva e pesar.

A palavra “Noma” vem do grego, que significa “devorar”. Esta infecção evitável havia destruído metade do rosto da menina. Ela havia perdido a bochecha, os dentes e as gengivas estavam doloridos e infectados e dava para ver até sua cavidade ocular.

O médico me informou que seu osso estava necrosado e deveria ser removido. Não havia opção de anestesia para esse procedimento aqui. Então, com um pouco de analgésico tópico, começamos a retirar os fragmentos ósseos.
Sangue e lágrimas

A mãe segurou a cabeça da menina enquanto o médico usava uma pinça para retirar o osso necrosado, o que resultou em sangue e muitas lágrimas. Lágrimas da menina, minhas e de sua mãe.

Eu tive que dar um passo atrás da mãe e me acalmar. A gentil enfermeira de saúde mental colocou a mão no meu ombro enquanto também segurava a cabeça da mãe enquanto ela chorava.  

A situação desumana que vi naquele dia é totalmente evitável. Naquele momento, eu só conseguia sentir raiva de como deixamos isso acontecer com nossos semelhantes.

No entanto, a raiva não tem lugar na clínica, então, tive que respirar fundo, me recompor e me apresentar como uma enfermeira que poderia aprender a ajudar na limpeza de feridas, que é uma parte essencial do tratamento de Noma.  

Bem-vindo a Sokoto

Este foi meu primeiro dia de trabalho como enfermeira de MSF. Eu tinha sido designada para o nosso projeto que mantém o único hospital que trata Noma do mundo. O programa de MSF no Hospital Infantil de Noma em Sokoto apoia as pessoas afetadas de várias maneiras.

Sokoto fica no extremo noroeste da Nigéria. A cidade tem uma paisagem predominantemente agrícola, onde comunidades nômades viajam pelas terras cruzando caminhos com os habitantes da cidade.  

O hausa é a língua mais falada, mas todos os nossos colegas também falavam inglês.  A religião dominante é o Islã, e a população local tem comportamento religioso e veste roupas tradicionais. O chamado à oração pode ser ouvido em toda a cidade ao longo do dia.  É um ambiente confortável quando as pessoas ao seu redor têm valores tão fortes e dignidade em toda a comunidade.  

A Nigéria é rica em recursos naturais e minerais, no entanto, existem enormes desigualdades que podem levar a consequências devastadoras, como Noma.  

Como enfermeira experiente em cirurgia, eu estava lá para apoiar a equipe local e internacional durante uma cirurgia facial reconstrutiva. Aqui, a resposta humanitária de MSF visa restaurar a dignidade das pessoas afetadas, por meio de cuidados de qualidade prestados por equipes de especialistas.

Uma doença desfigurante e mortal

Noma é uma doença desfigurante e mortal que mata milhares de pessoas por ano, mas recebe pouca atenção pública.  Começa como uma infecção gengival grave, levando a úlceras dolorosas na boca e ao redor dela.

A doença progride para uma infecção necrosante que mata os tecidos moles. À medida que se espalha, Noma destrói o rosto, os lábios e o queixo, deixando os sobreviventes com cicatrizes extensas.  

O resultado é a desfiguração ao longo da vida, a incapacidade, a miséria, o desespero e o isolamento social.

Às vezes, a ferida causada por Noma é curada, mas de uma maneira que trava as mandíbulas, eventualmente causando a fusão dos ossos e, portanto, impedindo que os pacientes abram a boca novamente. Isso é chamado de trismo.

Os sobreviventes de Noma com trismo não podem falar ou comer adequadamente e, à medida que envelhecem, são excluídos de suas comunidades, dificultando o casamento e o emprego, isso se não for impossível.

Como isso pode estar acontecendo?

Noma é completamente evitável. A última incidência da doença na Europa ocorreu em prisioneiros dos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

É difícil entender como isso ainda pode estar acontecendo, quando temos direitos humanos internacionais e que protegem especificamente crianças. No entanto, meus colegas me informaram que o número de pacientes com “Noma recente” – novas crianças levadas ao hospital com a doença negligenciada – está aumentando.  

Nossos pacientes geralmente vivem em áreas muito remotas e viajam longas distâncias para chegar até nós. Alguns chegam desnutridos e exaustos. Seu direito à alimentação, saúde e saneamento definitivamente não está sendo cumprido pelo Estado ou pela comunidade internacional.

No entanto, no Hospital Infantil de Noma, em Sokoto, a maravilhosa equipe se esforça para atender às suas necessidades.

Cuidado inspirador e holístico

A inspiradora equipe de saúde mental tem muito a fazer e está ativamente envolvida em todas as etapas da jornada.
Isso começa quando uma criança pequena com Noma chega ao hospital. Elas precisam de distração e brincadeiras enquanto passam por procedimentos dolorosos para limpar e tratar suas infecções iniciais.  

Nesse momento, a equipe de saúde mental também apoia gentilmente os cuidadores do paciente (que talvez sejam irmãos, avós ou até vizinhos), dando-lhes apoio para criar relacionamentos positivos com e para as crianças, que geralmente são estigmatizadas por suas comunidades e famílias.

A equipe oferece maravilhosas sessões em grupo, iniciando discussões e ajudando os sobreviventes de Noma (a doença tem uma taxa de mortalidade muito alta, de até 90%) a formar comunidades dentro do hospital, onde geralmente precisam permanecer por um longo período de tempo.

Esperanças e medos

A equipe de saúde mental também desempenha um papel dinâmico no apoio aos pacientes antes e depois da cirurgia reconstrutiva.  

Este é um período extremamente ansioso, pois muitas vezes eles tiveram que esperar anos para que seus rostos pudessem ser reconstruídos.  Muitos têm que deixar para trás a família e as fazendas por períodos que põem em risco seus meios de subsistência e segurança.  

Há medo do desconhecido e riscos de cirurgia.  

No entanto, além de todos esses sentimentos, também há emoção e expectativa!

Antes da cirurgia, os sobreviventes de Noma esperam pela primeira vez em que poderão sorrir, falar, descobrir seu rosto, nariz ou até comer adequadamente.

Aqueles que foram ostracizados pensam no dia em que serão libertados de seu tormento e poderão participar da vida novamente.

 

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