Atenção médica a comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul

A médica Raquel Simakawa fala sobre a importância de atender esta população

Atenção médica a comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul

“Não vou ao hospital, eu tenho medo.” Tal frase tem se tornado mais frequente nestes tempos da pandemia, que já fez 939.427 vítimas fatais no mundo até o momento em que escrevo este desabafo. Questiono-me quantas delas eram evitáveis e não foram causadas exclusivamente pela COVID-19, mas também pela intersecção de negligência, desigualdade socioeconômica e despreparo técnico.

A pessoa que me diz essa sentença me faz pensar que a apreensão de ser encaminhada ao hospital tem raízes mais profundas do que alguém desatento pode imaginar. Ouvi essa frase de uma indígena da etnia terena de 54 anos de idade e moradora de uma das aldeias na região de Taunay, no norte do Mato Grosso do Sul (MS), durante uma visita domiciliar como médica do projeto que Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou no fim de agosto.

A decisão de atuar nesse local se baseou nos números alarmantes de casos e mortes entre a população indígena. A região de Aquidauana, onde o projeto está, tem as taxas de incidência e mortalidade por COVID-19 mais altas dos polos-base indígenas do MS, que é o terceiro estado com maior número de comunidades indígenas do Brasil.

Até 16 de setembro foram 1.792 casos de COVID-19 confirmados em Aquidauana; desses, mais da metade corresponde a indígenas moradores das aldeias, com cerca de 20 óbitos. Antes do início das atividades de nossa equipe no hospital regional da cidade, a taxa de mortalidade era de 100% entre os pacientes em ventilação mecânica na UTI.

Quão contraditório é um sistema de saúde baseado em princípios como universalidade, integralidade e equidade e que ao mesmo tempo inspira tanto medo naquela indígena e sua família? Medo de ficar sozinha, medo de não ter sua vontade respeitada ou sequer considerada, medo de não saber o que está sendo feito com ela, medo de ser hostilizada por ser indígena, medo de morrer longe dos seus. Mais de 500 anos se passaram desde o primeiro contato e o medo continua atravessando as relações entre brancos e indígenas.

Cada etnia tem sua história no contato com o não-indígena, mas um ponto em comum é o olhar violento do colonizador que julga a cultura indígena como primitiva e selvagem, levando muitas vezes à subjugação e escravização de um povo. Desde o início, houve imposição de valores, crenças e estilo de vida brancos sobre os do indígena e isso não foi diferente com os terena. Da Guerra do Paraguai, quando terra foi falsamente prometida a esse povo para incitá-lo a lutar pelo Brasil, até o apagamento de práticas e crenças xamânicas por religiões monoteístas, sente-se como a ancestralidade pode estar presente naquele medo de se deixar ser cuidada por um não-indígena nesse momento de vulnerabilidade ao estar doente.

Seguimos no atendimento daquela mulher terena e tento me convencer que cada nova interação cultivada no respeito, afeto e cuidado pode atenuar as consequências dessa violência histórica.

 

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