Cada dia é um novo aprendizado – Parte II

Diego Cabral fala sobre o convívio com os pacientes e as surpresas de vivenciar uma realidade muito distante da sua

Cada dia é um novo aprendizado - Parte II

07/08 – Foi uma grande experiência ontem à noite e ainda estou um pouco atordoado. Morreu o primeiro paciente no centro cirúrgico. Um caso muito difícil, paciente muito grave, muito tempo sem um médico para ajudá-lo. Ele esperou cinco dias para vir ao hospital porque ficava muito longe de sua casa e ele não tinha dinheiro para o transporte por carro, o que é muito comum aqui. O paciente não aguentou nem mesmo a indução da anestesia e sofreu uma parada cardíaca muito rápida. Estávamos convencidos que tínhamos feito tudo que podíamos, todas as possibilidades haviam sido usadas, mas o paciente não sobreviveu. Não foi fácil. Falei com ele apenas minutos antes. E, agora, ele está morto. Não sei se ele tem filhos, se é casado ou se os pais estão vivos. Só sei que uma pessoa morreu na minha frente, em um hospital de MSF, lugar onde eu pensava, no Brasil, que eu só salvaria as pessoas… Eu não esquecerei jamais o seu rosto.

Talvez no Brasil as coisas pudessem ter sido um pouco diferentes. Ou não. Nunca saberemos. A verdade é que, dentro das nossas possibilidades, fizemos tudo e isso, de alguma forma, me tranquiliza. Infelizmente, não temos aqui todos os equipamentos e sabemos que essas coisas fazem a diferença em muitos casos, mas frente a essa situação médica grave é difícil dizer qualquer coisa mais.

Durante essa noite e no dia seguinte, muita gente de MSF veio falar comigo para perguntar como eu estava. Isso me tocou. Tenho certeza de que faço parte de uma família e que posso contar com várias pessoas. Estamos aqui pelos outros e, entre nós, somos um só.

12/08
Quase uma semana depois da complicação na sala cirúrgica e não posso dizer que me sinto bem. Sempre me lembro desse caso. Também me lembro das palavras de Joanne Liu, nossa presidente: “como um médico de MSF, devemos fazer tudo o que podemos por nossos pacientes, porque eles não têm outra opção, eles não podem escolher, nós somos praticamente tudo que eles têm”. E, para mim, eu não pude salvar sua vida. É algo que nós não poderemos recuperar nunca. Inevitável não pensar nisso. Por outro lado, há muitas pessoas aqui que precisam de nós, de uma cirurgia, um anestesista. E eu estou aqui por eles. Mas confesso que não é fácil…

13/08
Essa semana vivi um caso interessante. Um jovem, 16 anos, passando por sua terceira cirurgia. Assim que ele acordou da anestesia, suas primeiras palavras foram “eu não quero morrer, eu não quero morrer!”; e chorou muito. Pensei o tanto que as pessoas aqui sofrem. Elas não têm comida, casa, conforto e, quando estão doentes, não têm acesso fácil ao hospital. A guerra tornou a vida aqui ainda mais triste e complicada.

17/08
Uma coisa que me impressionou aqui é a forma como a morte é celebrada. No Brasil, normalmente, as pessoas choram muito. Na RDC, as pessoas cantam (alto!), dançam e fazem uma espécie de cortejo fúnebre. É de fato um adeus bem caloroso.

Ontem, um paciente morreu no hospital. Enquanto sua mulher chorava, outras mulheres a circundaram e cantaram uma música bonita, intensa e cheia de energia. Tenho certeza que a viúva sofreu, mas por outro lado ela nunca vai esquecer a afeição e o respeito que recebeu de suas compatriotas durante esse momento difícil.

A última história de hoje é a de um pai que chegou no hospital ontem com sua filha de 9 anos de idade. Ela estava há sete dias com uma doença abdominal muito grave, precisando de uma intervenção cirúrgica. O estado da doença não nos assustou, mas as palavras de seu pai, sim. “Aindei três dias com ela nos meus braços para chegar aqui”. A criança, que estava muito mal, entrou imediatamente na sala de cirurgia e, mais uma vez, era um caso de perfuração intestinal (causada por febre tifoide, doença associada à pobreza extrema). É difícil falar qualquer coisa depois de ouvir essa história. Pensamos em tudo que chamamos de “problemas” na nossa vida. Caminhar três dias com uma criança nos braços… É preciso vontade, força, coragem e, o mais importante, muito amor.

20/08
Ontem foi um dia muito feliz para os profissionais do hospital: a menininha de 9 anos, que chegou nos braços do pai, acordou do estado de coma depois de 48h. Incrível! Aqui, nas condições que temos, ver um caso como esse é realmente motivo de alegria!

Um rapaz me emocionou com uma atitude inesperada. Ele passou pela sua primeira cirurgia há 10 dias e pela segunda, há quatro. Nunca falei muito com ele, porque ele sempre estava com sua mãe e, portanto, junto com a família. Uma noite, quando passei pela enfermaria para ver os pacientes (e, confesso, para alimentar meu espírito com sua energia e alegria), o rapaz pediu que eu me aproximasse dele. Ele me disse docemente: “quando você partir, você pode me levar com você para o seu país?”. O que devo responder numa situação dessas? Por que ele quer sair do seu país, deixar sua família e sua história aqui? Tenho certeza que ele tem muitas razões para querer isso. E é exatamente esse o motivo que me deixa triste e me faz refletir. O rapaz não sabe onde eu vivo. Ele simplesmente quer partir…

Temos aqui histórias inacreditáveis. Recebemos uma mulher com uma fratura na coluna vertebral. Ele ficou paralítica e, infelizmente, não há nada a fazer. Ela ficou algumas semanas sob nossos cuidados e depois decidiu deixar o hospital mesmo sem receber alta. A cena que não sai da minha cabeça é a de quando uma motocicleta chegou para buscá-la. Consegue entender a situação? Uma mulher paralítica, no meio de duas pessoas, numa moto? Sua expressão de dor me emocionou. Tenho certeza que na sua casa os cuidados não serão como os nossos e, depois de alguns dias, uma infecção grave acabará aparecendo…

E como essa senhora da história acima, muitos outros pacientes chegaram e se foram, todos os dias, sobre uma moto. Coisas que eu não poderia jamais imaginar, situações muito críticas na minha opinião, mas que para eles são a realidade, as coisas que eles têm, a única possibilidade de viver.
 

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